Quem sou eu?

Tive a certeza de não me conhecer ou reconhecer verdadeiramente. Talvez estivesse morta e não o soubesse. Quem era aquela pessoa? Uma mulher, nem feia nem bonita, com uns olhos tristes.

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Estava a ver um filme no sofá. Descansada. De repente pensei: “Não sinto o coração.” Medi a pulsação com os dedos no pescoço. Nada. Senti, então, um disparo de medo. Levantei-me e fui até à casa de banho, até ao espelho mais próximo, vi-me e estranhei a minha imagem. Era eu, sim, reconhecia sem dúvida a minha cara, mas quem era aquela pessoa? Quem sou eu?

Tive a certeza de não me conhecer ou reconhecer verdadeiramente. Talvez estivesse morta e não o soubesse. Quem era aquela pessoa? Uma mulher, nem feia nem bonita, com uns olhos tristes. Sim, os olhos revelavam tristeza. Senti um certo espanto por ver ao espelho os meus olhos “encharcados como violetas”. Voltei a levar os dedos, o indicador e o médio, à jugular. Apercebi-me, então, do palpitar das artérias, leve mas ritmado. Afinal não estava morta. O alívio não foi suficiente para me poupar a mais inquietação.

Deixei o enigma impossível de resolver do espelho, não se pode perguntar a um espelho quem somos, e a minha atenção concentrou-se no exterior. O ar ficou pesado. Parecia não haver oxigénio suficiente, a casa tornou-se um elevador encravado entre dois pisos e apinhado de gente. Custava respirar. As mãos húmidas e trémulas procuraram o telefone. Andando pelo corredor, o soalho de madeira novo, as paredes brancas, a luz da tarde atrevendo-se a entrar com alegria através da janela, tudo continha uma película de irrealidade. Supliquei para que a realidade tal como sempre a conhecera não se desintegrasse. No quarto, o telefone pousado em cima da cama também me parecia um objecto estranho. Os nomes na lista de contactos tornaram-se quase impossíveis de fazer corresponder aos respectivos rostos. Estaria a enlouquecer?

Quis mandar uma mensagem a uma amiga. Mas não sou pessoa de me queixar. Ninguém podia entrar na minha cabeça e apaziguá-la. O telefone começou a tocar. Uma chamada não identificada, um número anónimo. Com os olhos postos no ecrã, hesitava, talvez fosse melhor não atender. Não estava em condições de falar com estranhos, quando eu própria me tornara uma estranha de mim. O telefone parou de tocar. Senti-me aliviada. Mas logo recomeçou. “Que insistência”, pensei. Considerei que talvez fosse melhor atender, podia ser algo grave e urgente.

Do outro lado da linha, a voz de alguém familiar, que não se identificou. Disse apenas “em breve vais conhecer alguém importante”, desligando depois, sem mais nenhuma explicação. Tudo se tornara, de facto, uma imensa bizarria. Voltei a sentir urgência de procurar um espelho. Vi-me no guarda-vestidos do quarto. “Esta sou eu. Do cabelo curto aos seios proeminentes. Tudo isto é transitório, Não há é como fugir ao que está cá dentro. Ao poço de perguntas.” Pensei na estranha chamada que tinha recebido. Pensando bem, a voz parecia-me a minha, mas quem seria a tal pessoa importante que iria conhecer? Seria eu própria? Depois, não sei se por excesso de irrealidade ou exaustão, ou se o primeiro estava a ser causado pelo segundo, desmaiei. 

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