Refugiados: que pessoas queremos ser?

No 10.º aniversário do P3, estendemos o Megafone a dez vozes para falarem de dez causas. O que mudou numa década? Como será a próxima? Patrícia Alves Fernandes questiona-nos: “Consegues imaginar-te pequeno, frágil e completamente sozinho, numa terra que não é a tua? Na fronteira do que já não existe e do que nunca será?”

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Reuters/ELIAS MARCOU

Samari tem seis anos. Foi gravemente ferida durante uma explosão que atingiu Beirute e perdeu a visão do olho esquerdo. Mohammed foi queimado por um bombardeamento perto da sua casa em Homs, na Síria, e tem o corpo rendilhado por uma história que ninguém vai saber explicar. A pequena Rose vagueia pelo labirinto de tendas do campo de refugiados de Impevi, no Uganda, à procura do que beber. Tem cinco anos e os olhos fundos de medo. No Sudão do Sul perdeu os pais e o que aqui vai ganhar estará sempre aquém do que o mundo lhe deve. 

Consegues imaginar-te pequeno, frágil e completamente sozinho, numa terra que não é a tua? Na fronteira do que já não existe e do que nunca será? Num exercício mais mordaz à tua humanidade, pensa em crianças bem nutridos, vestidas e calçadas, dispostas numa imensidão de vidas suspensas em que todas as faces lhe são estranhas, onde a comida escasseia e a perspectiva de futuro é chegar ao dia seguinte. Angustia-te? Assim espero, pois preciso de continuar a acreditar que não somos todos um lixo como pessoas e que estas, em particular, merecem toda a nossa compaixão.

Cerca de metade dos refugiados do mundo são crianças. Segundo a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (UNHCR), perto de um milhão já nasceram com esse estatuto e a maioria não tem acesso a educação escolar. Números que impressionam, mas que não são mais do que resultado de conflitos armados, desastres naturais e mudanças climáticas que abalam diferentes regiões do globo, como o Afeganistão, a Venezuela, a Somália, a Eritreia, entre outros, e que, ao todo, somam mais de 82,4 milhões de pessoas que se viram forçadas a procurar auxílio fora do seu país, reforçando a estatística de que a cada dois segundos há alguém no mundo obrigado a deslocar-se para escapar a situações às quais é alheia.

Quando, em 2015, a Europa começou a lidar com um dos maiores movimentos de pessoas em busca de protecção internacional, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a chamada “crise dos refugiados” trouxe à luz o egocentrismo proteccionista que nos caracteriza, extrapolado por movimentos extremistas que hasteiam a bandeira da insegurança e do terrorismo, para nos convencerem de que a fragilidade dos outros é um perigo iminente à nossa paz. Ergueram-se velhos muros, fecharam-se fronteiras, varreu-se o problema para debaixo do tapete da desumanidade, ao mesmo tempo que milhares morriam espezinhados entre a fé e o precipício. Desde então, o tema refugiados tornou-se mais real, mais próximo e constante do nosso quotidiano confortável. Espantamos-mos com as imagens de corpos que flutuam entre a Turquia e a Grécia, ao mesmo tempo que temos a imoralidade de pormos em causa a franqueza de um abraço de gratidão.

Para vos escrever este texto, trouxe até mim a perplexidade face à maldade humana. Foi fácil tocar-me ao coração. Hoje não sei bem como vou ultrapassar as caras vulneráveis e perdidas de meninos e adultos que constam nas centenas de vídeos e fotografias que vi.

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