Um gesto largo
A elevação de um monumento no Largo do Rato simultaneamente a Aristides Sousa Mendes e aos que ele salvou do Holocausto constituiria a homenagem definitiva dos lisboetas ao munícipe adoptivo de eleição.
Um nó górdio impediu até hoje a construção do prédio para uso habitacional e comercial cujo projecto foi aprovado em 2005 pela vereação de urbanismo de Lisboa para o lugar no Largo do Rato onde, até ao final do século passado, funcionara um equipamento público, o jardim infantil da Associação Escolar de S. Mamede.
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Um nó górdio impediu até hoje a construção do prédio para uso habitacional e comercial cujo projecto foi aprovado em 2005 pela vereação de urbanismo de Lisboa para o lugar no Largo do Rato onde, até ao final do século passado, funcionara um equipamento público, o jardim infantil da Associação Escolar de S. Mamede.
O referido nó górdio poderia no entanto ser finalmente cortado se a autarquia revertesse a decisão de mudança de uso do lote e se apossasse dele para erguer um monumento ao diplomata Aristides Sousa Mendes, que em Junho de 1940 decidiu sacrificar o que fosse preciso para salvar quantos pôde dos que fugiam ao exército alemão que invadira a França e conseguiram chegar a Bordéus para tentar alcançar a fronteira, terrestre ou marítima.
Com efeito, entre os milhares que salvou, com a ajuda dum rabino amigo e de dois filhos, contava-se o que terá sido o maior contingente de judeus salvos do Holocausto por um diplomata no decurso da II Guerra Mundial, feito notável que chegou a altura de assinalar pelo levantamento dum marco em local apropriado da cidade onde Aristides de Sousa Mendes morreu ostracizado e só em 1954.
Ora, justamente o local em apreço no Largo do Rato não poderia ser mais apropriado para esse efeito na medida em que o preconizado monumento permitisse preservar, encaixilhando-a, a perspectiva parcial que proporciona da fachada da grande sinagoga moderna de Lisboa, construída quando ainda era proibido dar para a rua, e compreendesse um mural com todos os nomes conhecidos dos judeus salvos do Holocausto pelo honrado cônsul, perpetuando assim também a memória da queda da nossa civilização num abismo sem precedentes para que as gerações futuras não a repitam.
O gesto de reflectida desobediência às ordens superiores, motivado pelas circunstâncias excepcionais, não teria sido possível sem a fé profunda e culta que Aristides recebeu dos seus pais e que ele e a sua mulher Maria Angelina transmitiram com sucesso aos doze filhos e cultivaram denodadamente em sociedade, tendo deixado sempre por onde passaram um rasto de sã convivência com intelectuais de todos os credos e de credo nenhum, desde o prémio Nobel de Literatura de 1911, Maurice Maeterlinck, ao prémio Nobel de Física de 1921, Albert Einstein.
Não admira portanto que, tal como nos ensinou Sófocles na tragédia Antígona ser inevitável quando, para salvar a cidade, é preciso violar a sua lei, as vicissitudes compreensivelmente desencadeadas pela sua insubordinação tenham sido absorvidas na carne por Aristides Sousa Mendes e por Maria Angelina com elevadíssima dignidade e até às últimas consequências.
Mas são já vários e muito belos os gestos de reparação feitos desde então por instituições e por pessoas individuais, portuguesas e estrangeiras, cuja boa recepção foi crescendo com o passar do tempo, sendo agora perfeitamente razoável esperar que dentro em breve a casa da família em Cabanas de Viriato seja reabilitada e convertida no centro interpretativo por excelência duma vida tão exemplar.
Inscrevendo-se nessa linha, a elevação dum monumento simultaneamente ao diplomata e aos que ele salvou do Holocausto, além de nos permitir lançar uma âncora num largo precioso mas no qual tudo parece estar em fluxo permanente, constituiria assim a homenagem definitiva dos lisboetas ao munícipe adoptivo de eleição.
E seria muito oportuna para ajudar a neutralizar os efeitos perniciosos da moda da auto-flagelação colectiva e da constante desconfiança do papel na História do exercício soberano da recta consciência.
Ainda que o proprietário actual do lote não possa ou não queira contribuir para esta obra meritória, oferecendo-o à cidade, e seja necessário pagar-lhe, em dinheiro ou em espécie, para compensar a defraudação das expectativas criadas pela mudança de uso, que todavia nunca deveria ter acontecido, todos os candidatos à autarquia em 2021 deveriam comprometer-se a pôr cobro à controvérsia mediante um gesto largo nestes moldes.