Aristides de Sousa Mendes, 60 anos depois

Passam hoje 60 anos da morte de Aristides de Sousa Mendes, no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa, e ainda que não nos limitemos a lembrá-lo em datas de nascimento e morte, fazê-lo é também uma forma de continuar a mostrar que está vivo entre nós o seu acto de resistência – e simultaneamente de desobediência – que o tornou universal.

Queiram ou não os seus detractores e aqueles que usam, com hipocrisia, uma linguagem aparentemente neutra, no contar da sua história, aproveitando para lhe apontar situações que o denigrem enquanto cônsul, é inegável que este homem, imperfeito como todos nós, ousou desobedecer a Salazar, não sendo politicamente seu opositor e sabendo que prejudicar-se-ia profissional e familiarmente. Aí reside a grande diferença. Uma diferença que se anunciara na sua juventude quando, contrariando a violência e a estupidez das praxes universitárias, propôs, com o seu irmão gémeo, César, um acolhimento aos novos estudantes com música e poesia.

Cinicamente, aproveitar-se-á Salazar do comportamento do cônsul de Bordéus, auto-elogiando-se (1), no final da guerra, ao referir a sua benevolência para com os refugiados que haviam entrado em Portugal e lamentando não lhe ter sido possível ir mais além. De memória curta, mal de todos os tempos, esquecera-se o ditador que um número substancial de refugiados, sobretudo judeus, entrara no país, em 1940, graças a um visto assinado por Aristides de Sousa Mendes, à data cônsul em Bordéus. A própria PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) dava conta, nos seus relatórios, de um número excessivo de refugiados, nesse Verão de 1940. Vale a pena relembrar também as palavras de Sousa Mendes: "Fui eu, assim, o único responsável pela entrada de tantos estrangeiros em Portugal, do que até hoje não me arrependo, cônscio de ter cumprido o meu dever. Mas, em consequência, fui severamente castigado e aposentado 'por incapacidade profissional'".

Muitos são os descendentes, espalhados por países vários, que testemunham, pelo facto de eles próprios estarem vivos, e num eco do que lhes foi contado, o dia abençoado em que os seus familiares receberam a assinatura, tão intensamente desejada, que lhes daria a vida. Salazar, como todo o ditador, nunca respondeu às inúmeras cartas enviadas por Aristides de Sousa Mendes, a propósito do castigo recebido. Quebrou o silêncio quando soube da sua morte, a 3 de Abril de 1954, enviando a seu irmão gémeo um cartão no qual expressava: "Sentidos pêsames."

Pouco interessa a polémica do número de refugiados salvos, porque, na verdade, louvável é o facto de Aristides ter respondido sem demora ao sofrimento e ao desespero de rostos humanos, que no quotidiano presenciava, assumindo a sua responsabilidade na salvação dessas vidas tragicamente ameaçadas. Um comportamento que continuou em Portugal, na sua residência familiar, em Cabanas de Viriato – Casa do Passal –, na qual encontraram hospitalidade muitos refugiados que aí aguardaram a partida para outro país. Nesse espaço viveu o cônsul de Bordéus até ao final da sua vida, repousando no cemitério local.

É esta casa, espaço arquitectónico que sobressai não só pela sua grandeza arquitectónica, mas também como lugar de memória que remete para o drama intemporal dos refugiados, que todos queremos ver recuperada, cumprindo-se assim finalmente os objectivos da Fundação Aristides de Sousa Mendes [FASM]. É pois, para nós, motivo de regozijo, porque, resultado de um intenso trabalho conjunto entre a fundação, a anterior Câmara de Carregal do Sal (continuando a actual movida pelos mesmos propósitos) e a Direcção Regional da Cultura Centro, o facto de se ter obtido do QREN a verba para a realização da 1.ª fase de trabalhos relativos à recuperação do Passal (reposição da cobertura e sustentabilidade das paredes) [é uma realidade]. O concurso público já terminou e, neste momento, aguarda-se a escolha da empresa que iniciará, crê-se, no início do Verão, as referidas obras.

A terminar, dou conta de uma iniciativa da FASM, numa homenagem ao cônsul, grande apreciador de música clássica, no próximo dia 10 de Abril, pelas 18h30, no Centro de Estudos Judiciários, com entrada livre: Recital de Canto e Piano "Aristides de Sousa Mendes", com Wolf e Schumann, interpretado por Ana Maria Pinto, João Terleira e Nuno Vieira de Almeida.

Fundação Aristides de Sousa Mendes

1) António de Oliveira Salazar, Discurso e Notas Políticas (Coimbra, Coimbra Editora, 1951), "Portugal, a Guerra e a Paz", p.105 (referido por Rui Afonso in Aristides de Sousa Mendes, Um Homem Bom).

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