O Cinema Português na Era Netflix

Estamos perante transformações tecnológicas e novos hábitos de consumo de produtos culturais cujas consequências a longo prazo ainda não são inteiramente legíveis. São apenas os primeiros passos na regulação da transição digital no que respeita ao cinema e ao audiovisual.

A Europa tem sido o espaço privilegiado da afirmação do cinema português, celebrado e distinguido em vários certames europeus pela sua singularidade, pelo rasgo dos nossos cineastas e mestria dos profissionais envolvidos. O cinema português está prestes a conhecer novos benefícios da sua inserção nesse espaço, através dos efeitos da transposição da Directiva dos Serviços de Comunicação Social Audiovisual (2018/1808), que acarretou recentemente alterações à nossa lei, com consequências no financiamento da produção de cinema e de audiovisual.

A chamada “directiva Netflix” veio responder à necessidade de enquadrar as inovações tecnológicas no domínio audiovisual, a rápida migração do cinema para as plataformas de streaming e os novos hábitos de consumo que lhe estão associados, agora amplificados pelos longos períodos de confinamento devidos à pandemia. O texto estabelece as regras para a oferta de serviços de comunicação social audiovisual, passando a considerar também os canais de televisão por subscrição, as plataformas de partilha de vídeos, como o Youtube, e os serviços audiovisuais a pedido, ou VOD (video on demand), tais como a Netflix, HBO, Disney+ e Amazon.

A polémica não tardou e polarizou o mundo do cinema entre aqueles que vêem na nova lei 74/2020 uma oportunidade para o sector do audiovisual e aqueles que a consideram insuficiente – ou até prejudicial. Compreendendo algumas das reservas suscitadas pela nova lei, que entrará em vigor a 1 de Janeiro, uma análise objectiva das suas consequências permite-nos constatar que as plataformas VOD ficam agora sujeitas ao pagamento de uma taxa anual de 1% sobre os seus proveitos, com o produto da cobrança a reverter para as receitas próprias do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), e passam a ter obrigatoriedade de investir no cinema e no audiovisual em Portugal. Para além disso, os catálogos de filmes e séries destes operadores terão de acomodar uma quota mínima de 30% de obras europeias, das quais pelo menos metade tem de ser obras de produção independente, “originariamente em língua portuguesa, produzidas há menos de cinco anos”. Também a actual taxa de exibição de 4% sobre a transmissão de publicidade em canais de televisão, cuja cobrança reverte para o ICA, passa a abranger os serviços de plataformas de partilha de vídeos, como o Youtube. Não menos importante é a inclusão das despesas de gestão do ICA no Orçamento do Estado, libertando receitas próprias do instituto para repartir pelos concursos de financiamento do cinema e audiovisual.

Com este enquadramento legislativo, fica claro que a transposição desta directiva contribuirá, de forma imediata, para fomentar o cinema português produzido e/ou exibido nestes operadores. Irá ainda contribuir para uma concorrência mais equilibrada entre os vários tipos de serviço.

Naturalmente, esta directiva não está isenta de críticas. A forma como se vai proceder à recolha dos impostos em que incorrem as empresas de streaming, por exemplo, tem levantado dúvidas. A verdade é que vamos ter de encontrar um mecanismo eficaz de monitorização da prestação de contas por parte destas empresas. Para isso, a Comissão Europeia está já a trabalhar num sistema de tratamento dessa informação.

Devemos estar conscientes do pano de fundo de todo este processo. Estamos perante transformações tecnológicas e novos hábitos de consumo de produtos culturais cujas consequências a longo prazo ainda não são inteiramente legíveis. São apenas os primeiros passos na regulação da transição digital no que respeita ao cinema e ao audiovisual. Mas é inegável o esforço da União Europeia e dos Estados-membros em acompanhar estas transformações e em promover maior justiça fiscal, também neste campo.

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