O estranho caso jurídico do bebé dos anos 90: isto cheira a oportunismo, não vos parece?

O bebé que aparece nu na capa do álbum de 1991 dos Nirvana, Nevermind, agora com 30 anos, pede uma indemnização que pode chegar aos 2,5 milhões de dólares. O objectivo deste processo é claro e óbvio, e tudo aquilo que o queixoso agora argumenta para atingir o que deseja não existe: não existe qualquer violação de direitos.

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Spencer Elden DR

A história que agora envolve os membros da banda Nirvana, bem como os herdeiros do falecido guitarrista e vocalista da banda, Kurt Cobain, em que estão acusados por Spencer Elden de violação de leis federais americanas de pornografia infantil e exploração sexual infantil, está envolta em polémica e a dar a volta ao mundo.

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A história que agora envolve os membros da banda Nirvana, bem como os herdeiros do falecido guitarrista e vocalista da banda, Kurt Cobain, em que estão acusados por Spencer Elden de violação de leis federais americanas de pornografia infantil e exploração sexual infantil, está envolta em polémica e a dar a volta ao mundo.

O bebé que aparece nu na capa do álbum de 1991 Nevermind, agora com 30 anos, pede uma indemnização de 150 mil dólares (aproximadamente 128 mil euros) a todas as partes envolvidas. Sendo que, neste processo tão mediático, estão cerca de 17 arguidos com alegada responsabilidade, ou seja, a indemnização poderá chegar aos 2,5 milhões de dólares (cerca de 2,1 milhões de euros) pelos danos que, supostamente, Spencer Elden sofreu.

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A capa de "Nevermind": Spencer Elden tinha quatro meses. Kirk Weddle

Os fundamentos para a propositura da acção contra os Nirvana prendem-se com o “sofrimento emocional extremo e permanente” de Spencer Elden, que alega ter também sofrido “interferência no desenvolvimento”. O jovem frisa ainda que a imagem “distribuída e vendida em todo o mundo” desde que era bebé até agora está “ligada à exploração sexual” que viveu enquanto menor. Por tudo isto, Elden chegou, segundo o próprio, a precisar de “tratamento médico e psicológico”.

Não deixa de ser interessante, antes de qualquer abordagem mais jurídica, relembrar que, em 2015, numa entrevista dada pelo agora queixoso ao The Guardian, Elden disse que a imagem na capa do álbum dos Nirvana foi uma “coisa positiva” que o ajudou em “termos profissionais” e “com as raparigas”. Também no 10.º, 20.º e 25.º aniversário do álbum Nevermind, Elden recriou a capa, mas agora, já adulto, usou sempre calções de banho.

Segundo as normas e as leis dos Estados Unidos da América, esta acção terá pernas para andar? Na minha opinião, não. Nem lá, nem cá, supondo que isto aconteceria em Portugal.

Obviamente, à primeira vista de qualquer leigo na matéria, e bem, tudo isto é uma tentativa de ganhar algum dinheiro, não sendo de todo a reparação de uma qualquer injustiça. No fundo, aquilo para a qual a justiça deve servir. O caso é verdadeiramente insólito, mas vamos perceber a razão pela qual Spencer Elden não tem razão nenhuma.

Desde logo, quem olha para a capa não vê, nem pode ver, qualquer imagem que possa suscitar pornografia infantil. Ali, simplesmente se pode ver um bebé a nadar. Nada mais.

Duas notas que podem fazer cair toda esta acção: o factor temporal e cronológico conjugado com os seus fundamentos. A existência de uma nota de um dólar sugere, na opinião do queixoso, o crime de pornografia de menor. Esta é a questão penal. Ora, a lei federal norte-americana só consider pornografia infantil uma imagem que mostre o menor em actos ou comportamentos sexualmente explícitos. Não será aqui o caso.

Vamos a este simples exemplo: a fotografia de uma mãe a dar o primeiro banho ao seu filho não demonstrará, creio, qualquer acto de pornografia infantil. Se a mesma deve ou não ser publicada, aí o caso será de outra ordem.

Ou seja, a intenção ou acto em si mesmo é revelador em termos penais nos Estados Unidos, tal como cá. Não havendo e não sendo evidente a intenção, como em Portugal, o caso fica desde já inquinado. O caso da prescrição é outro factor a ter em conta. Todos temos um prazo para obter juridicamente um direito, mas requerê-lo 30 anos depois parece motivado por qualquer outra coisa que não justiça. Nos Estados Unidos, em matéria penal, a prescrição varia de estado para estado.

A tentativa de aproveitamento económico é, no meu ponto de vista, mais do que evidente. Sendo que, pelo lado penal, a questão está esclarecida, há outro aspecto jurídico a analisar: o direito à imagem. Spencer Elden invoca abuso no uso da fotografia por ausência de consentimento. Assim, e de acordo com a legislação nos EUA, o conceito do direito à imagem não é bem igual ao nosso.

A nossa legislação prevê a defesa do direito à imagem, seja na Constituição da República, seja no Código Civil. Isto é: todos temos o direito de não ser fotografados e não permitir qualquer divulgação de imagens pessoais sem autorização. Nos EUA, o direito à imagem está integrado em dois conceitos: o right of privacy (em português, direito à privacidade), para pessoas anónimas, e right of publicity (em português, direito à publicação), destinado à imagem de pessoas públicas. O consentimento a ser dado não tem de ser escrito, pode ser verbal. Neste caso, parece ter existido consentimento verbal, que vale igualmente por lei nos EUA.

Havendo um pagamento aos pais no valor de 200 dólares, há uma autorização para uso da imagem, não existindo durante todos estes anos qualquer comportamento contra este uso. Não parece, então, fazer sentido algum que Spencer, à altura sem qualquer capacidade jurídica (não poderia decidir o que quer que fosse), venha agora, 30 anos depois, arguir o abuso ao direito de uma imagem. Para isso, sentindo-se incomodado com tal abuso, no limite, a acção recairia sobre os seus pais.

O objectivo deste processo é claro e óbvio, e tudo aquilo que o queixoso agora argumenta para atingir o que deseja não existe: não existe qualquer violação de direitos, seja em sede penal, seja em sede de direito de imagem. Tudo o resto é Nevermind.