A memória construída das ciências cognitivas

O que genuinamente me inquieta é a possibilidade de interferência externa na memória pessoal que ressinto como violação da própria identidade, um perder-se em troca de algo desconhecido e alheio.

E eis que de repente nos surpreendem com a afirmação de que algumas das nossas lembranças talvez nunca tenham existido. Aquela festa de família que revivo com prazer sem que tenha estado presente, a viagem que não fiz e de que recordo ter conhecido um amigo querido, o evento que relembro como de superação de uma meta que nunca alcancei, podem episodicamente resultar de descrições familiares frequentes sobre essa festa, das fotografias da vigem que me mostraram repetidas vezes, da intensidade do desejo de realização desse desafio. Sendo estes incidentes ou reconstruções mnésicas características de recoleções de infância, em que a maturação cerebral é ainda insuficiente, ou de pessoas idosas, cuja memória denuncia o desgaste cognitivo de uma vida longa, pode também acontecer ao adulto saudável ter memória do que nunca viveu. A nossa memória reconfigura-se ao longo da vida, podendo integrar dados inexatos ou mesmo inexistentes. Da descoberta da remodelação natural da memória à indução artificial de uma remodelação controlada é um passo que as ciências cognitivas poderão franquear… 

A mente humana, nos seus misteriosos processos de funcionamento, sempre exerceu uma forte atração para estudiosos de várias áreas do saber e também para diversas sensibilidades espirituais. Contudo, apenas com a emergência das ciências cognitivas, desde o final do século passado, se vem obtendo conhecimento relevante e, sobretudo, uma capacidade de intervenção cada vez mais impactante. As ciências cognitivas, graças à sua dimensão interdisciplinar – articulando conhecimentos, ideias e metodologias da Psicologia, Filosofia, Linguística e outras ciências sociais, além da Matemática, Física e Ciência da Computação, da Biologia evolutiva e da Neurociência – vêm conseguindo descrever, explicar e estimular os processos de pensamento humano amplamente considerados como a percepção, inteligência, linguagem, memória, raciocínio, emoções ou consciência de si.

Fascina-me este conhecimento cada vez mais amplo, profundo e rigoroso do cérebro, ao mesmo tempo que me inquieta as possibilidades que se vão perfilando de um progressivo controlo exógeno do seu funcionamento. E, entre a crescente abrangência de funções cognitivas sob estudo, devo reconhecer sobressaltar-me particularmente o poder que se vai conquistando sobre a memória, esse discreto e furtivo reduto pessoal, íntimo e único, absolutamente privado e totalmente inacessível a outrem, que vai agora sendo descoberto e exposto ao olhar exterior como à mão humana, tornando-se proporcionalmente vulnerável. É que a memória, histórica e ficcional, consubstancializa a nossa identidade, singular e colectiva, pelo que qualquer ingerência externa se pode converter em desvirtuamento ou mesmo perversão da identidade.

A capacidade de manipulação da mente humana desenvolve-se actualmente por diversas vertentes paralelas que podemos sistematizar num crescendo. Uma primeira, já hoje comum em determinados grupos da sociedade, é relativa à utilização de psico-estimulantes. Estes visam aumentar a capacidade do cérebro e dos desempenhos mentais, inicialmente num contexto terapêutico, como seja o do controle e eventual regressão de doenças neurodegenerativas, como um melhorador de memória para doentes com Alzheimer. No entanto, são também usadas numa diversidade de situações e objectivos específicos nem sempre de índole terapêutica como o prolongar o estado de vigília, estimular a atenção, a concentração, aumentar a memória, a rapidez de raciocínio, a energia, isto é, reforçar as funções cognitivas em geral, bem como contrariar a hiperactividade ou controlar o humor. Muitas destas substâncias são vendidas sem receita médica, por vezes via Internet e algumas mesmo no mercado negro, sendo que frequentemente carecem de comprovação científica – tudo formas de agressão sobre a mente.

Entretanto, trabalha-se intensamente na produção de neuroimplantes, dispositivos directamente ligados ao cérebro de uma pessoa, que deverão produzir efeitos análogos aos procurados pelos psico-estimulantes, mas de forma mais eficaz, intensa e controlável. Os potenciais benefícios terapêuticos são evidentes, por exemplo na doença de Parkinson ou na dependência de drogas depressoras (álcool, heroína), e legítimos na convergência entre as alterações que se inscrevem no amplo e dinâmico conceito de restauração de um normal funcionamento e as concepções subjectivas de bem-estar (existindo doentes psiquiátricos que recusam medicação invocando a preservação da sua identidade). Entretanto, os neuroimplantes deverão permitir não só reforçar capacidades existentes, mas também criar novas.

Entramos assim, paulatinamente, no fantástico domínio da edição de conteúdos mentais. No presente, decorrem já vários projectos de aplicação selectiva de estímulos para fortalecer e/ou enfraquecer conexões entre os neurónios, o que deverá vir a permitir apagar, reactivar ou formar memórias. A procurada manipulação da memória poderia suprimir memórias identificadas como más e introduzir outras consideradas boas e nunca vividas pela pessoa em causa. Mais uma vez não faltariam argumentos beneficentes que legitimassem a estimulação cerebral profunda, como no caso de traumas ou desgostos intensos sofridos.

Um outro patamar, superior, neste crescente poder sobre o funcionamento do cérebro e especificamente sobre os seus conteúdos, é protagonizado por tecnologias ditas especulativas, mas em que equipas de cientistas estão a trabalhar, como a da transferência mental. Referimo-nos ao deslocar da inteligência, da memória, das capacidades mentais de uma pessoa para um suporte não-biológico, informático. A partir de uma possível futura compatibilidade entre a mente humana e os computadores desenvolver-se-ia a interface entre o cérebro e o computador e proceder-se-ia ao download dos conteúdos cerebrais pessoais para um suporte digital em que todas as reconfigurações se tornariam também possíveis. O leitor dirá que, finalmente, nos projectámos para um plano de inutilidade social, cujas aventuras apenas serviriam propósitos sectários e que, por isso, deveriam ser simplesmente banidas. E, todavia, talvez não seja bem assim. Não será difícil supor uma situação clínica em que a integridade cerebral pessoal esteja ameaçada, como no caso de intervenção cirúrgica com risco grave de lesão permanente, que recomendaria a transferência prévia, preventiva e provisória dos conteúdos cerebrais para um computador. Aliás, no limite, o mesmo procedimento poderia ser generalizado no termo da vida do corpo, com uma transferência cerebral para outro corpo ou até para um robot, havendo já quem se refira a uma imortalidade digital. É evidente que estamos na esfera da ficção científica…, ainda!

Devo reconhecer que não me preocupa ter uma ou outra lembrança fictícia. Saber que pode acontecer é uma lição de humildade perante a arrogância das nossas certezas que convém interiorizar. Além disso, há todo um processo vivido que explica a assimilação do não-vivido na minha vida e a sua incorporação como parte integrante, constituinte da minha memória. Afinal, somos mais a nossa memória do que a nossa história. O que genuinamente me inquieta é a possibilidade de interferência externa na memória pessoal que ressinto como violação da própria identidade, um perder-se em troca de algo desconhecido e alheio.

A avassaladora inovação científica – meritoriamente responsável por um mundo que não deixa de oferecer hoje mais bem-estar a mais pessoas do que ontem – irrompe também lamentavelmente em manifestações plurais que tendem a subjugar o humano ao progresso em vez de o manter ao serviço do humano. O movimento parece irreprimível e qualquer desaceleramento parece censurável. Este ímpeto, que nos envolve e arrasta, mais depressa nos torna cativos (qual “canto da sereia”) do que nos liberta. Pergunto-me, então, até onde este encantamento pelas novas tecnologias se exerce ingénua e acriticamente? A ponto de nos perdermos? É que desmemorizados de nós, quedar-nos-iamos esvaziados de identidade e estranhos a nós mesmos.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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