O projeto de lei do desacorrentamento é ineficaz e socialmente irresponsável

O PAN não gosta de varandas. Eu não gosto de marquises. Mas não são os nossos gostos que deveriam estar em causa. A ciência do bem-estar animal tem evoluído no sentido de desviar a sua atenção dos recursos em si próprios para os efeitos que estes têm sobre os animais. Este projeto de lei representa um passo atrás nesta tendência.

Os avanços no nosso país em matéria de bem-estar animal nos últimos anos são assinaláveis, reflexo de uma maior sensibilidade para a senciência animal e a crescente importância do papel dos animais de companhia nas sociedades ocidentais. O PAN – Pessoas, Animais e Natureza tem sido instrumental para as iniciativas legislativas que sobre estas matérias surgiram nos últimos anos, embora nem sempre com o mesmo acerto.

É porventura o caso do Projeto de Lei n.º 883/XIV/2.ª, que visa regular o acorrentamento e o alojamento em varandas de animais de companhia, atualizando as normas complementares à Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia. Neste projeto de lei, o PAN propõe que nenhum animal de companhia possa ser acorrentado, ou alojado em varandas, alpendres e espaços afins, durante períodos superiores a três horas, nem possa ser deixado sozinho durante mais de 12 horas. Mais uma vez, o Estado prepara-se para impor proibições atrás de proibições a reboque da sensibilidade ética, e quiçá estética, do legislador em vez de procurar responsabilizar os cidadãos, conferindo-lhes ferramentas para melhorar o bem-estar dos seus animais.

Estamos certamente todos de acordo que o acorrentamento permanente não é desejável e deve ser proibido. Mas também não parece aceitável que cães passem toda a sua vida num espaço fechado, como um canil, mesmo que acompanhados e obedecendo às dimensões legais. Também não me parece construtivo que se diabolizem as varandas (porque não garagens ou marquises?) e se imponham limites discricionários relativamente ao tempo que um animal está sozinho ou nesses espaços.

Parece-me, aliás, que este projeto de lei é socialmente irresponsável e pernicioso no que concerne à defesa do bem-estar animal. Quem é mais prejudicado por esta revisão da lei? Quem vive sozinho, quem é idoso ou tem limitações físicas e não tem quem lhe passeie o cão. Quem tem um emprego que não permite teletrabalho e passa muito tempo fora de casa. Quem tem mais dificuldades económicas e não dispõe de espaço ou recursos financeiros para construir um canil para o seu cão ou para adotar um outro animal que lhe faça companhia. Em resumo, são os mais vulneráveis e os seus animais de companhia. Vejamos três exemplos:

O Walter tem 28 anos, vive num T1 no Barreiro e trabalha numa grande superfície em Lisboa. Todos os dias sai para trabalhar por volta das 6h e não regressa antes das 20h. Durante 14 horas o seu gato fica sozinho em casa. Com receio de ser denunciado, Walter equaciona entregar o gato a uma associação zoófila.

A Sra. Rosa tem 78 anos e frequenta um Centro de Dia em Santarém. Todos os dias sai de casa às 8h30 e regressa pelas 18h30. Durante 10 horas o seu cão, um Rafeiro Alentejano que lhe foi oferecido pelo filho para lhe fazer companhia e proteger a casa, fica num alpendre de 30 m2, com casota, sombra, água e comida. Sem saber o que fazer, a Sra. Rosa decide deixar de frequentar o Centro de Dia para não violar a lei.

O Sr. Amílcar vive numa vivenda no Estoril onde tem dois Labradores num recinto fechado exterior de 13 m2, onde passam todo o dia. Os cães só são soltos ao fim de semana durante cerca de 10 minutos e caso esteja bom tempo, porque lhe estragam o jardim. Embora o Sr. Amílcar tenha condições para melhorar o bem-estar aos seus animais, ele sabe que não tem de se preocupar com isso porque a lei lho permite.

Estes exemplos ilustram algumas das consequências nefastas do afã justiceiro deste projeto de lei. O PAN não gosta de varandas. Eu não gosto de marquises. Mas não são os nossos gostos que deveriam estar em causa. A ciência do bem-estar animal tem evoluído no sentido de desviar a sua atenção dos recursos em si próprios para os efeitos que estes têm sobre os animais. Este projeto de lei representa um passo atrás nesta tendência. Assim, não importa tanto se o animal está numa varanda ou num canil, ou se o animal está sozinho 12 ou 14 horas. O que importa é o efeito desse alojamento ou do isolamento no bem-estar físico e mental dos animais.

Não faz sentido sancionar o detentor de uma espécie seletivamente social como o gato, cujo bem-estar não é sequer beliscado se passar 14 horas sozinho num apartamento (a maior parte das quais passadas a dormir), ou um detentor sénior que depende do seu Rafeiro Alentejano para companhia e proteção (mesmo que alojado a maior parte do tempo num alpendre). O mesmo já não se poderá dizer dos dois Labradores que passam oito vezes mais tempo dentro de um canil do que aquilo que o PAN pretende que seja permitido numa varanda, e cujos 10 minutos semanais de exercício fora do alojamento são manifestamente insuficientes para satisfazer as suas necessidades fisiológicas e etológicas. Este último caso, no entanto, não é tido em conta no projeto de lei do PAN nem é sancionável pelo atual enquadramento legal.

Em alternativa a uma solução penalista, proponho uma solução mais integrada e pedagógica. Invista-se em educação e na promoção da detenção responsável de animais de companhia. Dentro do enquadramento legal providenciado pela Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia, cabe ao Médico Veterinário Municipal ou outra autoridade veterinária em matéria de bem-estar animal, que já exista ou venha a ser criada, determinar se o bem-estar do animal de companhia está, de facto, comprometido e propor medidas concretas e específicas para o melhorar. Mesmo no que diz respeito ao acorrentamento, o limite das três horas (embora aparentemente razoável) não acomoda todas as situações em que a amarração pode constituir uma solução aceitável para a detenção provisória de um animal. Os limites temporais, a existirem, são temas de natureza técnica que têm de ser calculados à luz da situação concreta, da espécie animal em causa e da sua raça, e determinados pela autoridade em bem-estar animal (e não pelo legislador).

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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