História e política

O actual populismo tem tendência a fazer equivaler um historiador profissional que investiga com regras e métodos científicos e qualquer cronista que entra fortuitamente no campo complexo da História.

Nas últimas semanas, a História (contemporânea) tem sido usada como arma política do presente. Nada disto é novo, a não ser que a “polémica” se iniciou agora num congresso das direitas portuguesas e continuou em opiniões na comunicação social. Por outro lado, o poder político, em Portugal, tem-se envolvido directa ou indirectamente, por boas ou más razões, no campo da História, nomeadamente a propósito das próximas comemorações do 50.º aniversário do 25 de Abril.

1. Sobre a “polémica”, não me proponho rebater uma argumentação, baseada numa sacralização dos números, transformados em factos indiscutíveis, à maneira positivista, para caracterizar o regime ditatorial português. Qualquer historiador sabe que não é “fazer história” abordar apenas aspectos económicos, sem os interpretar, contextualizar e comparar, e evacuando tudo o que tenha a ver com os aspectos políticos, sociais e culturais. E na ditadura portuguesa, têm de ser referidos, pelo menos, os aspectos repressivos (censura, PIDE), a ausência de Estado social, a emigração, os salários de fome, a miséria e a guerra colonial, apresentada pelo regime como um caso de polícia, num Portugal do Minho a Timor.

Como já defendi, noutro debate ocorrido há anos neste mesmo jornal, a propósito de uma edição sobre História de Portugal, considero fundamental haver debate e troca de argumentos. Lamento até que a História não saia espaço académico, para ser debatida no seio de uma opinião pública informada e conhecedora. Pela minha parte estarei sempre disponível para falar sobre o que investiguei.

2. Ao erigir como inimigo as “elites”, o actual populismo tem tendência a fazer equivaler um historiador profissional que investiga com regras e métodos científicos e qualquer cronista que entra fortuitamente no campo complexo da História, sem ter passado um minuto num arquivo ou a ler. Não estou a defender o corporativismo, mas, se o senso comum faz pensar que é necessário um médico para tratar a doença e de um engenheiro para construir pontes, por que motivo, nas chamadas humanidades, todos se consideram especialistas?

3. Relembro que existe já hoje uma muito abundante bibliografia historiográfica sobre o regime derrubado em 25 de Abril de 1974 e também que, para caracterizar qualquer regime do passado, é benéfico utilizar a comparação histórica. Mas é melhor, por exemplo, comparar dados económicos no longo período ditatorial com outros países da Europa, no mesmo período. Para só falar dos valores da mortalidade infantil, compará-los, entre os anos 30 e 70 do século XX, em Portugal pouco traz, além de referir a cronologia da longa ditadura, a não ser que obviamente diminuiu em 42 anos.

Em 1930, 143,6 bebés até um ano por cada mil morriam em Portugal, valor que foi baixando, mantendo-se, porém, sempre muito alto: 94,1, em 1950, 77,5, em 1960 e 55,5 por mil, em 1970. Ora, neste último ano, a média da mortalidade infantil da UE (a 27) era menos de metade do que em Portugal: 25 por mil. E já agora, convém comparar o valor da mortalidade infantil na ditadura com o de 2020, em Portugal: 2,4 por mil. Compare-se também os valores da mobilidade social, da redistribuição da riqueza, do analfabetismo, da emigração.

4. Após o golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, a direita portuguesa ficou órfã de um passado que pudesse servir de modelo político e é verdade que a democracia deve a homens como Sá Carneiro e Freitas do Amaral que, ao erguerem os primeiros partidos de direita, não defenderam o legado – por demais negativo – do chamado Estado Novo. Recentemente um estudo terá revelado que muitos portugueses gostariam de uma solução de tipo autoritário e que quase todos identificariam a democracia com a corrupção do poder. Cabe ao historiador falar da corrupção antes do 25 de Abril, mostrar como e o que acontecia, como viviam na realidade os portugueses das várias classes sociais, e ao cidadão que ele também é, combater politicamente, com os outros, as imperfeições da democracia que a podem destruir.

5. A propensão para o uso político da História sempre aconteceu e continuará a acontecer, à esquerda e à direita, da oposição ao poder político. No entanto, em democracia, cabe a este último favorecer a investigação historiográfica, financiando-a, sem favoritismos, nepotismos e com justiça nos critérios de selecção. Não é o papel do poder político escolher historiadores ou uma verdade histórica oficial. Por isso, não esperava do ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que desvalorizasse e ignorasse a investigação historiográfica existente.

É isso que faz, o apontar a existência de “uma falha de conhecimento” sobre os “salvadores portugueses” - Aristides de Sousa Mendes e outros diplomatas que salvaram perseguidos pelo nazismo –, a qual seria necessário “reparar com a edição” de “livrinhos” de divulgação, por ele encomendado. O senhor ministro não é obrigado a conhecer a historiografia portuguesa, mas o papel de Portugal face ao Holocausto é talvez dos temas que mais têm sido estudados por diversos historiadores, portugueses e estrangeiros, a partir dos anos 90 do século passado. Seria exaustivo mencioná-los, mas a este tema aqui regressarei.

6. Se não cabe ao poder político imiscuir-se na investigação historiográfica e dar uma versão oficial do passado, ele tem, quanto a mim, o direito (e até o dever) de nomear atempadamente quem dirigirá as comemorações do cinquentenário do 25 de Abril de 1974, data fundadora do nosso regime democrático. Enquanto historiadora e cidadã, estou certa de que a comemoração será levada a cabo com o desejado pluralismo, sem confundir memórias parcelares com História e, pelo contrário, ao favorecer a liberdade de opinião e de investigação.

Memória e História estão interligadas, mas a primeira é sempre inerentemente parcelar e partidária (no sentido de obedecer a um interesse exclusivo). Por isso as diversas memórias só podem ser “tratadas”, pela História, que é o verdadeiro instrumento de lembrança do passado. Na medida em que é mais distante e impessoal na sua relação com o passado, ela tem um papel de equidade e de verdade, para temperar a exclusividade das memórias particulares.

7. Nas comemorações do cinquentenário, que resultarão certamente em estudos de opinião, exposições, documentários, obras de arte e novas investigações, não deve evidentemente ser imposta, nem transmitida, por qualquer governo, uma única visão da História, muito menos oficial. Penso também que estas comemorações devem ser aproveitadas para se estudar em profundidade a guerra colonial, sobre cujo início em Angola passam 60 anos em 2021. É certo que a História da guerra colonial já começou a ser feita, entre outros, por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, não por acaso dois capitães de Abril, mas urge que a sua investigação seja incentivada, desde logo com a abertura dos arquivos militares.

Felizmente, o colonialismo e a guerra colonial já tem sido abordado noutros campos, desde logo a nível das imagens visuais e do documentário, com destaque para a série televisiva de Joaquim Furtado. Só este ano, em que passam 60 anos após o início da guerra em Angola, assiste-se a diversas exposições e filmes, sobre que recomendo: A Herança, de Ana Vidigal e Nuno Nunes-Ferreira; Visões do Império, de Miguel Bandeira Jerónimo e Joana Pontes, que assina um filme com o mesmo nome, e o documentário Fantasmas do Império, de Ariel de Bigault.

8. Em democracia, os cidadãos e o poder político têm de pautar a sua actuação pelo pluralismo e pela liberdade, combater a corrupção, o clientelismo e o nepotismo e não se “armarem” em detentores de qualquer “moral superior”. A História pode ajudar, ao indicar os caminhos de sofrimento e dor do passado do passado que não queremos voltar a trilhar.

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