Bem-vindo a casa, Noah: carta ao viajante Noah para ler quando for grande

Conseguiste fazer algo raro: uniste o país num só coração e numa aspiração só e respiramos todos de alívio. É possível que tenha havido um mar de lágrimas por todo o Portugal. Qual futebol, qual carapuça. O nosso troféu és tu, Noah.

Foto
Uma fotografia de Noah divulgada pelos pais nas redes sociais DR

Querido Noah,

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Querido Noah,

por esta altura, imagino que já saibas tudo sobre os dias em que deixaste todo um país de coração nas mãos, em que nos deixaste a todos a rezar para que fosses encontrado vivo e de saúde. Espero também que já tenhas bem a noção de que foi uma parvoíce arriscares-te assim — mas estás mais que perdoado, afinal tinhas menos de três anitos e, tendo eu nascido e crescido numa aldeiazinha, como tu, apesar de em tempos menos perigosos, sei bem o que quer dizer sentirmos a liberdade da natureza que nos cerca, sentirmo-nos à vontade na nossa casa quando esta acaba por ser toda a aldeia e arredores.

Por isso também, durante estas arrepiantes horas em que não sabíamos de ti, não me saíam da cabeça as vezes em que “fugi” de casa, e às mais variadas idades, deixando, claro, como tu, os meus pais aflitos. Mais a minha mãe, coitada, que o meu pai, de quem sou um clone com duas ou três diferenças das boas, se havia coisa que não o preocupava era eu meter-me pelos caminhos das nossas terras (nossas num sentido mais comunitário que de propriedade efectiva) ou visitar as nossas famílias do campo (nossas, uma vez mais, num sentido muito comunitário – lembro-te que no Alentejo todos os adultos são nossos Ti') ou ir à caça de laranjas e figos e peros e de outras maravilhas bem roubadas, aventurar-me ao bolinho-bolinho (era uma vez por ano mas por ali podia ser todos os dias). E, claro, sempre por quilómetros de nada e de tudo, sozinho muitas vezes, outras em grupo de amigos. Ao meu pai, como aos teus, imagino, só o preocupava se fossem, digamos, horas a mais sem saber de mim. Também tinha algum medo de eu cair duma arriba, ou, terror (meu) de cobras. Quanto a lobos, raposas, javalis, não havia medos, só bons conselhos. Aliás, o meu pai deu-me, precisamente, dois bons conselhos que te deixo: “Leva sempre uma caninha e anda sempre com uma faquinha”. Ainda hoje, quase nos 50 com que te escrevo – por coincidência sentado no velho super-mercado dos meus pais e cercado de memórias –, não me aventuro pelo mundo sem uma caninha nem uma faquinha.

Deixa-me falar-te de mim, ao dia em que te escrevo, pouco depois de te saber, graças a Deus, bem e feliz com os teus. Sou, neste momento, jornalista e editor de muitas viagens, minhas e de outros, numa revista que talvez ainda exista ao dia em que me lês, a Fugas, do jornal PÚBLICO. O que sei de ti, neste 2021, é tudo pelos jornais: vives na aldeia de Proença-a-Velha, estiveste 35 horas desaparecido, terás andado uns 10km durante esse tempo, embora tenhas sido encontrado a apenas 4km da casa dos teus pais no mato por voluntários das buscas (os grandes heróis desta história, como já saberás) — também bateram terreno agentes, mergulhadores, foram usados meios cinotécnicos e drones... —, chegaste ao hospital desidratado, com pequenas escoriações, fizeste soros, dormiste. À hora em que te escrevo, já deixaste o hospital de Castelo Branco, de onde saíste, “óptimo”. Mais vale prevenir. Felizmente, foste encontrado a tempo. Repara (e acredita que todos trememos ao ler isto): “Se fosse apenas encontrado hoje [um dia depois], a chover, estaria em hipotermia”, disse a directora-clínica do hospital. Também te digo que nessa notícia ficámos a saber uma palermice daquelas que a pandemia nos traz: só a tua mãe ficou a dormir contigo no hospital; o teu pai teve de voltar para casa por causa das “restrições”. Sim, porque ainda por cima nos desapareceste durante uma pandemia, nervos maiores.

Acredita que não olhei para a tua história como mais uma história. Nem te escrevo por causa de cliques (uma coisa que já não deves conhecer – este texto está cheio de links, mas acredito piamente em dar aos leitores toda a informação que possa desconhecer) e distracções dessas sem interesse nenhum. Escrevo-te porque te acompanhei desaparecido de lágrimas nos olhos, continuaram a correr-me as lágrimas agora de alegria quando te acharam com vida (repara no título do PÚBLICO: é mesmo “Noah foi encontrado com vida") e confesso-te que escrevo com os olhos ainda pouco secos. Conseguiste fazer algo raro: uniste o país num só coração e numa aspiração só e respiramos todos de alívio. É possível que tenha havido um mar de lágrimas por todo o Portugal. Qual futebol, qual carapuça. O nosso troféu és tu, Noah.

Deixa-me dizer-te por que me decidi a escrever este texto (para ti, sim, mas para todos os leitores que me dêem a honra de lê-lo, claro): porque de repente, tendo lido que não havia indícios de crime (temos tido casos terríveis nos últimos anos), nem culpa dos progenitores – apesar de alguns debates mais acesos ("onde acaba a autonomia de uma criança e começa a negligência dos pais?"), li também que terias despertado do teu sono e simplesmente ido à procura do teu pai que tinha saído para trabalhar no campo de madrugada. Percebi-te logo muito bem.

Li que os teus próprios pais dizem que és muito desenrascado e que, mesmo tão pequenino, já andas a fazer tropelias semelhantes — felizmente bem acompanhado pela tua cadela. De todas as vezes que vi a tua foto (aparecias muito com a cadela ao lado), desejei com todas as forças que ela te tivesse continuado a acompanhar. Sei bem como um cão nos pode salvar a vida. Seja pelos caminhos perdidos da minha Zambujeira e do meu Alentejo, seja pelas terras perdidas da tua Proença-a-Velha.

Um dia, Noah, escrevi um artigo mais íntimo, como este, e tive de pensar bem se o deixava partir para o mundo com o título No dia em que fugi de casa — é que quando escrevemos temos que ponderar bem nas nossas responsabilidades, por mais pequena que seja a nossa fama. Poderia este título, apesar de numa revista só lida por +20s (e upa upa), influenciar alguma criança a fugir de casa? Ponderei e ponderei e deixei-o ir com esse título porque era esse o seu título natural. Aí conto.

No dia em que fugi de casa para ir descobrir mundo, teria eu uns sete ou oito anos, fiz uma mochilinha para o caminho com pão, umas latas de salsichas, uns livrinhos de BD, talvez água ou sumos. Pouco mais de um quilómetro depois de começar a aventura, parei debaixo de uma árvore e devorei o meu piquenique enquanto lia os meus livrinhos. Mais uns passos depois e já estava de visita ao monte da minha tia, que sempre me parecera um refúgio perfeito para escapar à aldeia cheia de gente. A minha fuga ficou-se por aqui, mas estou certo que, quando o meu pai me foi apanhar ao monte na sua velha carripana saltitona, eu tinha aventuras para contar-lhe. Que as aventuras não se medem aos palmos.

A tua “aventura”, até porque a fizeste com muito menos aninhos que eu, foi tão arriscada como grande, Noah. Não vamos mitificá-la, não terias ainda consciência para tanto, mas eras mesmo pequeno de mais para tais odisseias mais prolongadas. Imagino que depois dessa, espero que bem mais velho, já te tenhas feito a mais e diferentes caminhos. Não sei porquê, tenho este pressentimento que serás um grande viajante e nunca te falhará o espírito aventureiro, seja qual for o caminho pessoal e profissional que a vida te deu e dará, que escolheste e escolherás.

O que quero dizer-te, e sim, com alguma emoção e esperança (seria bom sinal se isto se realizasse), é que quando fores grande e leres isto me contactes. Bem sei que até a Marinha Portuguesa já sugeriu que aos 18 te inscrevas para os Fuzileiros. Espertos, viram-te logo potencial para fazeres parte do “Destacamento de Acções Especiais, onde as tácticas de sobrevivência são fundamentais”. Como eles, espero que também tenhas aproveitado “com a família a tua infância”. Agora que já és grande, espero que gostes de estudar o mundo e te interesses não só pelo que está à volta da tua terra como por descobrir o resto — começa-se sempre pelas vizinhanças, isso já descobriste. Aliás, a nossa aldeia é o maior dos nossos mundos. Sempre será. Se um dia quiseres saber como transformar as fugas de infância noutras coisas, até a escrevê-las, dá-me um toque.

E, nessa altura, como agora, ficarei muito feliz por poder dizer-te: bem-vindo a casa, Noah.