Dois apocalipses cinquentenários embebidos em música

Há meio século, dois discos vieram lembrar-nos o livro do Apocalipse. Recordemo-los, quando até já se invoca o Apocalipse para falar da covid-19.

Na passada semana, a propósito dos Beatles, falou-se aqui do filme A Hard Day’s Night, que em Portugal teve por título Os 4 Cabeleiras do Após-Calypso, trocadilho com Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Título de um outro filme; aliás, de dois. O primeiro faz agora 100 anos: realizado por Rex Ingram, em 1921, teve Rudolfo Valentino como protagonista; e o segundo foi realizado em 1962 por Vincente Minnelli, com Glenn Ford, Ingrid Thulin e Charles Boyer no elenco. Ambos inspirados no livro homónimo do espanhol Vicente Blasco Ibáñez (1867-1928), que recorreu aos quatro cavaleiros descritos no Apocalipse bíblico para (ele que era escritor e também jornalista) retratar os horrores da I Guerra Mundial de 1914-1918, que ele viu com os seus próprios olhos, como correspondente em várias frentes de tão sangrentas batalhas. O livro, publicado ainda a guerra ia a meio (em 1916), vendeu 10 milhões de exemplares só nos Estados Unidos.

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Na passada semana, a propósito dos Beatles, falou-se aqui do filme A Hard Day’s Night, que em Portugal teve por título Os 4 Cabeleiras do Após-Calypso, trocadilho com Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Título de um outro filme; aliás, de dois. O primeiro faz agora 100 anos: realizado por Rex Ingram, em 1921, teve Rudolfo Valentino como protagonista; e o segundo foi realizado em 1962 por Vincente Minnelli, com Glenn Ford, Ingrid Thulin e Charles Boyer no elenco. Ambos inspirados no livro homónimo do espanhol Vicente Blasco Ibáñez (1867-1928), que recorreu aos quatro cavaleiros descritos no Apocalipse bíblico para (ele que era escritor e também jornalista) retratar os horrores da I Guerra Mundial de 1914-1918, que ele viu com os seus próprios olhos, como correspondente em várias frentes de tão sangrentas batalhas. O livro, publicado ainda a guerra ia a meio (em 1916), vendeu 10 milhões de exemplares só nos Estados Unidos.

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Cartazes dos filmes de Rex Ingram (1921) e Minnelli (1962), este numa edição francesa

A palavra apocalipse, que em grego clássico significa “descoberta”, é tanto associada à ideia de revelação (e é assim que surge, na Bíblia, começando o livro do Apocalipse com estas palavras: “Esta é a revelação de Jesus Cristo”) como a um clímax de horrores. Não por acaso, Coppola deu o título de Apocalypse Now à sua reinterpretação, no cinema, do livro Coração das Trevas de Joseph Conrad, publicado em 1902, transpondo-o para a guerra do Vietname nos anos 70.

Faz agora meio século, foi publicado em Espanha, em Junho de 1971, um disco cujo título era precisamente Apocalipsis. Assinava-o um grupo musical e coral chamado Aguaviva, que através da poesia procurava despertar consciências para os problemas de Espanha (então sob a ditadura de Franco) e do mundo, ainda a braços com o Vietname e o fantasma da bomba nuclear. E lá vinham os quatro cavaleiros, numa sequência mais adequada a esses tempos: Fome, Guerra, Morte e Peste, este numa referência ao pesadelo nuclear e à bomba atómica sobre Hiroshima, com poemas de Alfredo Mañas, Gabriel Celaya, Bertold Brecht, Blas de Otero e Cesar Vallejo.

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Capas das edições em vinil dos discos Apocalipsis e 666

Por essa mesma altura, três músicos gregos ansiavam lançar aquele que viria a ser o seu terceiro e último álbum, idealizado em Paris em 1970 e ali gravado em 1971. Título: 666. Exactamente, mais uma referência expressa ao Livro do Apocalipse no Novo Testamento da Bíblia cristã, atribuído ao apóstolo João, que nesse próprio texto se diz “exilado na ilha de Patmos” (no Mar Egeu, hoje uma ilha vulcânica grega), por ser considerado inimigo do Império Romano.

O número 666 encontra-se no Apocalipse, 13:18, com estas palavras: “Quem é esperto, calcule o número da Besta; é um número de homem; o número é seiscentos e sessenta e seis”. A Besta aí descrita, que costuma ser associada ao demónio, terá um outro sentido. Segundo os anotadores de uma edição monumental da Bíblia em português, datada em 1993 (Círculo de Leitores, 1999), o 666, “conforme o número das letras em hebraico”, corresponderia “ao nome de César Nero, o imperador romano da época”. O exílio forçado de João por ordem de Roma justifica a alusão.

Mas voltemos a Paris e aos tais gregos. Dois deles viriam a tornar-se bem conhecidos: o multi-instrumentalista Vangelis Papathanassiou e o cantor Demis Roussos (1946-2015). O terceiro era Loukas Sideras, o baterista. Usavam, como grupo, o nome de Aphrodite’s Chid e tinham, até essa altura, lançado dois álbuns: End of the World (1968) e It’s Five O’Clock (1970). O terceiro, porém, tinha ambições conceptuais e saíra inteiramente da cabeça de Vangelis e de um outro grego, que escreveu as letras: Costas Ferris, cineasta, escritor, actor e produtor. Para as gravações foram convidados outros músicos, além da actriz e cantora Irene Papas, num tema que tinha inicialmente 39 minutos (!), mas acabaria reduzido a cinco. Tal como o grupo acabaria reduzido a zero, desintegrando-se depois. A editora, Mercury, adiou o disco. Achou que não venderia e empurrou-o para uma etiqueta subsidiária, a Vertigo, que só o lançou em 1972, indiferente à irritação dos músicos, que fizeram em 1971 uma sessão de protesto pelo atraso no lançamento.

Em 666, editado em LP duplo (depois CD duplo), muitos dos 24 títulos remetem para a fonte bíblica, numa atmosfera de rock progressivo onde se misturam jazz e música concreta: The four horsemen, Babylon, The Lamb, The seventh seal, Seven trumpets, etc. Um outro apocalipse, a juntar ao espanhol (e sem qualquer ligação entre ambos), trazendo à tona ameaças ancestrais. Para recordar, 50 anos passados, quando o Apocalipse até já é invocado para falar da covid-19.