Ecce Homo atribuído a Caravaggio deverá ter pertencido às colecções reais espanholas

Investigadores ancoram teoria em dois inventários de monarcas datados do século XVIII. Mas falta ainda muito para que o percurso desta obra recém-redescoberta em Madrid esteja mais completo.

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Pormenor do Ecce Homo retirado do leilão da Casa Ansorena DR

Quanto mais o tempo e a investigação avançam, mais se adensa a história que se pode contar sobre o Ecce Homo atribuído a Caravaggio que desde Abril agita os meios académicos em Espanha e Itália, protagonista de uma novela que já fez correr muita tinta. Agora, é a revista Ars Magazine que vem dar conta de que os especialistas que procuram traçar o percurso desta obra que poderá ter sido executada pelo mítico mestre do barroco italiano acreditam que terá pertencido à colecção real espanhola.

Segundo esta publicação do mundo da arte e do coleccionismo, a pintura, que hoje é propriedade da família Pérez de Castro, aparece no inventário ligado ao testamento de dois monarcas espanhóis — Carlos II (1661-1700) e Carlos III (1716-1788) e em ambos os casos integra o espólio que faz parte da decoração do Palácio da Casa de Campo, também conhecido como Palácio dos Vargas.

Nos dois documentos do século XVIII, o mais recente dos quais elaborado por dois pintores de corte, um deles Francisco de Goya, a descrição da pintura, não muito detalhada, e as dimensões apresentadas correspondem às da obra que está agora em apreciação e cuja atribuição a Caravaggio (1571-1610) não é ainda definitiva, embora venha sendo dada como muito provável.

No inventário de Carlos II, diz-se apenas que se trata de um Ecce Homo que se encontrava no quarto do rei e refere-se o tamanho. No de Carlos III, estudado e publicado em 1989 pelo investigador Fernando Fernández Miranda, vai-se um pouco mais longe, dizendo que é um Ecce Homo com mais duas figuras, “ao estilo de Caravaggio”.

Não seria de estranhar, escreve ainda a Ars Magazine, que, mesmo sabendo à época que se tratava de um Caravaggio, estivesse na Casa de Campo, historicamente importante para a monarquia espanhola, e não no Palácio Real. Isto porque, sublinha a publicação, o recheio deste palacete incluía pinturas de grande qualidade, algumas, até, de Jheronimus Bosch.

O Ecce Homo em causa, recorde-se, esteve para ir a leilão em Abril na Casa Ansorena, em Madrid, com uma base de licitação de 1500 euros, valor atribuído, naturalmente, antes de o nome do artista nascido Michelangelo Merisi estar associado ao seu “pedigree”.

Perante as dúvidas quanto à sua autoria levantadas por vários especialistas em pintura italiana do XVII inicialmente previa-se que a obra fosse à praça como pertencendo a um artista do círculo do espanhol José de Ribera (1591-1652) —, a Junta de Qualificação de Bens do Património Histórico acabou por proibir a sua exportação e o ministro da Cultura, José Manuel Rodríguez Uribes, solicitou a sua classificação como bem de interesse público.

Os dois documentos agora associados a esta pintura, uma ligação que importa ainda aprofundar para que seja o mais consensual possível, permitem preencher uma lacuna no seu percurso. Tomando como verdadeiras as hipóteses até aqui avançadas pela imprensa espanhola, a obra chegou ao país na segunda metade do século XVII pela mão de García de Avellaneda y Haro, segundo conde de Castrillo e, no primeiro quartel do século XIX, pertencia já à Academia de Belas-Artes de São Fernando, sendo trocada em 1823 com a família do político Evaristo Pérez Castro, que é hoje sua proprietária, por uma pintura de Alonso Cano.

Como saiu a obra da colecção de Castrillo (é lá que está, num inventário de bens de 1657) e entrou na da casa real espanhola? E como é que, do quarto do rei na Casa de Campo, passou para o acervo da Academia? Os investigadores tentarão ainda dar resposta a estas e a muitas outras perguntas. Para a primeira, dá conta a Ars Magazine noutro artigo, há já hipóteses. Estima-se que o conde de Castrillo, vice-rei de Nápoles, território que pertencia ao império espanhol, a possa ter enviado a Filipe IV num lote que incluía, entre outros, um Caravaggio (Salomé com a Cabeça de São João Baptista), hoje no Palácio Real, e um Rafael (Visitação), que pode ser visto no Museu do Prado, ambos em Madrid.

Para o professor de História de Arte da Universidade Complutense Ángel Aterido, especialista em pintura barroca ouvido pelo diário El País, é muito plausível que o Ecce Homo retirado do leilão seja a mesma pintura que é referida nos dois inventários reais. Mas, adverte, é preciso estudar mais e melhor o seu percurso. O assunto da autoria desta pintura que representa Cristo a meio corpo, com uma coroa de espinhos e as mãos atadas, está longe de estar encerrado.

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