Fome na Etiópia ameaça repetir catástrofe de 1984

Mais de cinco milhões de pessoas estão em risco de perder acesso a alimentos básicos na região de Tigré, com 350 mil já em situação de catástrofe. Embaixadora dos EUA na ONU diz que o mundo “não pode cometer o mesmo erro duas vezes”.

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Adan Muez, de 14 anos, foi internado no Hospital de Adigrat, no Tigré Reuters/BAZ RATNER

A região de Tigré, no norte da Etiópia, uma das mais afectadas pela grande fome que matou mais de um milhão de pessoas no país em meados da década de 1980, está novamente sob a ameaça de uma catástrofe que afecta, pelo menos, 350 mil pessoas. Segundo as Nações Unidas, a situação “vai agravar-se muito mais” nos próximos meses, mesmo que a assistência humanitária comece a chegar à população de forma directa e a um ritmo mais elevado.

De acordo com um relatório publicado na quinta-feira, feito com base em informações recolhidas por várias agências da ONU e organizações não-governamentais, 353 mil pessoas na região de Tigré estão hoje na fase 5 da insegurança alimentar — a mais grave da escala, que corresponde a uma situação de catástrofe em que pequenos grupos da população, espalhados por grandes áreas, estão a morrer de fome.

Ao todo, incluindo as populações que enfrentam a fase mais grave de insegurança alimentar e situações de crise e emergência, há 5,5 milhões de pessoas em risco na província de Tigré e nas vizinhas Afar e Amhara.

“É o maior número de pessoas em situação de catástrofe motivada pela escassez de alimentos, em todo o mundo, desde a fome de 2011 na Somália”, sublinha o relatório. 

Governo desmente

Por motivos políticos, as organizações internacionais evitam emitir uma declaração de fome num país ou numa região, optando por dividir as situações no terreno em cinco fases: vestigial; assinalável; situação de crise; situação de emergência; e catástrofe.

A declaração de fome só acontece após a verificação de critérios muito restritos, quando se constata que há grandes segmentos da população, perfeitamente identificáveis, a morrer de fome — o que em muitos casos é de difícil avaliação por causa das dificuldades de acesso às populações.

No caso do relatório publicado esta semana, os responsáveis salientam que o documento “não contou com a aprovação do Governo da Etiópia”, que continua a negar a existência de fome em Tigré ou em qualquer outra região do país.

Mesmo assim, o subsecretário-geral da ONU para os Assuntos Humanitários e Coordenação de Ajuda de Emergência, Mark Lowcock, foi além das classificações estipuladas e afirmou que “há fome neste preciso momento na Etiópia”, numa declaração feita através da rede social Twitter.

“Para salvar vidas e impedir que a situação se agrave ainda mais, é preciso mais financiamento, um acesso sem barreiras às pessoas que precisam de ajuda e um aumento da resposta humanitária”, disse o responsável.

No cenário menos pessimista, e ainda que a ajuda humanitária chegue a 60% da população afectada nas próximas semanas e meses — uma hipótese remota, por causa dos violentos combates na região que opõem os exércitos da Etiópia e da Eritreia à Frente de Libertação do Povo Tigré —, o número de pessoas em situação de fome vai subir para 400 mil em Setembro, segundo o relatório.

“Se o conflito se agravar ainda mais, ou se, por qualquer outro motivo, a assistência humanitária for dificultada, a maioria das áreas de Tigré vão ficar em risco de fome”, lê-se no documento.

"Um pesadelo"

Num sinal da gravidade da situação, a embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, Linda-Thomas Greenfield, referiu-se à situação em Tigré como “um pesadelo”.

“Isto não é um tipo de desastre que pode ser revertido rapidamente”, declarou a responsável, na quinta-feira, num painel sobre a situação no norte da Etiópia.

E deixou um alerta, recordando o período de fome no país africano, entre 1983 e 1985, que matou mais de um milhão de pessoas e inspirou campanhas de sensibilização e angariação de fundos em todo o mundo — como o festival de música Live Aid, no Verão de 1985, que foi transmitido pela televisão a partir dos estádios de Wembley, em Londres, e John F. Kennedy, em Filadélfia.

“Não podemos cometer o mesmo erro duas vezes”, disse Linda-Thomas Greenfield. “Não podemos deixar a Etiópia morrer à fome. Temos de agir agora.”

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