As crianças e a cidade: contributos das Ciências Sociais e para além das mesmas

Dada a invisibilidade das crianças como sujeitos políticos e produtores de conhecimento, torna-se especialmente importante a formulação de uma diversidade de metodologias adequadas às mesmas, que permitam escutar a sua voz e salvaguardar o seu direito à participação.

O tema das crianças na sua relação com a cidade tem suscitado um interesse crescente por parte de várias áreas disciplinares e interdisciplinares, com especial relevo para os estudos da infância e os estudos urbanos, mas também por parte da medicina, da arquitetura, do design, ou, mais recentemente, das ciências informáticas e interação humano-computador. Neste texto, posicionando-me como cientista social e coordenadora do Projeto CRiCity – “As crianças e o seu direito à Cidade: Combater a desigualdade urbana através do desenho participativo de cidades amigas das crianças”, começo por destacar a importância das ciências sociais para a análise desta questão, realçando dois aspetos particulares desse contributo. Em seguida, e tendo como inspiração a abertura revelada pelos estudos da infância a outras áreas disciplinares, reflito sobre a relevância de uma análise transdisciplinar sobre a relação das crianças com a cidade.

Poderíamos enunciar toda uma série de tópicos que são caros aos cientistas sociais e fundamentais para uma análise da relação das crianças com a cidade, tais como: a agência e a participação e, neste sentido também, as crianças como atores sociais e políticos; as transformações do espaço público urbano e, por conseguinte, as restrições impostas às crianças e aos jovens nos mesmos; a relação entre a urbanidade e a tecnologia e, portanto, também a relação das crianças com a tecnologia e o espaço urbano; o direito à cidade e o direito das crianças à cidade; as interações intra, intergeracionais e interespécies que ocorrem no espaço urbano, ou as construções sociais em torno de determinados grupos e categorias sociais/geracionais, designadamente da infância. Não quero dizer que estas questões sejam exclusivas das ciências sociais, pois algumas destas têm sido investigadas por outras áreas disciplinares a partir de ângulos diferentes, mas é contudo inegável a importância que os cientistas sociais têm tido para a sua análise.

O contributo que as ciências sociais têm trazido para a discussão da relação das crianças com a cidade passa porventura, em primeiro lugar, por uma “abordagem centrada nas crianças”, dando relevo às suas experiências, ações, interações e voz e respeitando a sua linguagem, processos simbólicos e competências. Os princípios desta abordagem – impulsionada grandemente pela sociologia da infância – contemplam uma adaptação das metodologias, das técnicas e do tempo de pesquisa às caraterísticas das crianças e do contexto sociocultural em que estas se inserem. Ao mesmo tempo, esta abordagem traz consigo uma nova perspetiva sobre a ética da pesquisa, em que as crianças deixam de ser consideradas como meros objetos e passam a ser sujeitos e até parceiras na investigação. Ganham especial relevo, neste sentido, as metodologias qualitativas e participativas e com recurso a diferentes linguagens, complementando técnicas analógicas e digitais, orais, visuais, escritas, ou através do jogo e da arte. Dada a invisibilidade das crianças como sujeitos políticos e produtores de conhecimento, torna-se especialmente importante a formulação de uma diversidade de metodologias adequadas às mesmas, que permitam escutar a sua voz e salvaguardar o seu direito à participação.

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ANNIE SPRATT/UNSPLASH

Em segundo lugar, as ciências sociais têm tido um papel fundamental ao nível de uma crítica sustentada quer às políticas urbanas, quer às políticas da infância. A sociologia, a geografia e a antropologia, entre outras ciências sociais, têm levantado questões cruciais sobre as transformações do espaço público urbano, relacionando-as com processos neoliberais como a mercadorização, privatização, securitização, homogeneização, ou “disneyficação” destes espaços e revelando também as suas implicações na restrição do direito ao lugar e do direito à cidade dos grupos sociais marginalizados. Por sua vez, os estudos da infância constituiram-se como crítica e alternativa à perspetiva científica dominante que via as crianças como indivíduos em potência e como sujeitos apolíticos, com repercussões dramáticas a nível das políticas da infância. Esta crítica tem-se revelado bastante eclética, integrando progressivamente perspetivas diversas tais como o feminismo, o pós-modernismo, o realismo crítico, os novos materialismos, as perspetivas pós-coloniais e descoloniais, os estudos críticos da infância, os ecofeminismos, ou as abordagens pós-humanistas relativas ao estudo das relações entre humanos e não humanos.

Uma série de textos recentes tem vindo a evidenciar a reflexividade dos estudos da infância, revelando um questionamento importante em relação à direção que este campo de estudos deverá tomar no futuro. Autores como Eßer, Kraftl ou Spyrou reivindicam uma maior abertura a outras áreas disciplinares para além das ciências sociais e sugerem uma descentração das crianças em prol de um enfoque mais relacional, de modo a ultrapassar o pendor humanista e antropocêntrico que tem marcado ainda este campo de estudos. Se a abordagem centrada nas crianças que referi acima foi crucial para romper com a perspetiva dominante que não reconhecia as mesmas como sujeitos de direitos, estes autores consideram que é necessário agora ir mais além, olhando criticamente para os conceitos de agência, voz e “perspetivas centradas nas crianças”.

Efetivamente, parece-me fundamental permanecer crítico/a e vigilante face ao nosso próprio processo de produção de conhecimento e simultaneamente atento/a ao que se faz noutras áreas disciplinares. Não é coisa fácil, pois trata-se de uma postura que requer abertura e experimentação, obrigando-nos a sair da nossa zona de conforto. Mas dessa postura pode emergir a tão prometida inter e transdisciplinaridade dos estudos da infância e porventura um maior e desejável diálogo com ciências como a economia, a gestão, a matemática, a medicina, as humanidades, ou as ciências informáticas e da interação humano-computador. Estes cruzamentos entre disciplinas provavelmente gerarão novos desconfortos e tensões, mas também podem trazer novos insights, novas maneiras de olhar para os problemas, maior complexidade e novas soluções.

As crianças, claro está, não podem ser excluídas deste debate, ou estaríamos a retroceder em vez de avançar. No contexto de Portugal talvez seja pertinente continuar a dar relevo a uma abordagem centrada nas crianças, pois o seu direito à participação permanece bastante coartado, sabendo-se, por exemplo, que as crianças só muito raramente são incluídas nos processos de planeamento urbano. Todavia, ao mesmo tempo vale a pena lembrar que, como sugere Sofia Cele, compreender as conceções que os adultos têm da cidade e da própria infância é central para a compreensão do modo como as crianças vivem e usufruem da cidade. 

Eunice Castro Seixas é doutorada em Sociologia, com uma formação de base (Licenciatura e Mestrado) na Psicologia. É investigadora no Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações (SOCIUS), Investigação em Ciências Sociais e de Gestão (CSG), no ISEG, Universidade de Lisboa. Coordena o projeto CRiCity – “As crianças e o seu direito à cidade: Combater a desigualdade urbana através do desenho participativo de cidades amigas das crianças”, financiado pela FCT (PTDC/SOC-SOC/30415/2017).

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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