Andamos a “carregar um espelho permanente”? A fadiga de ecrã traz consequências para o bem-estar

Especialistas garantem que “não fomos feitos” para estar sempre a ser confrontados com a nossa imagem e que a “constante comparação social” gera angústia e ansiedade.

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Estarmos sempre a comparar-nos a quem está do outro lado do ecrã, activa um mecanismo de auto-regulação Compare Fibre/Unsplash

Há quem esteja em teletrabalho há um ano, fruto da pandemia de covid-19. O teletrabalho e as constantes reuniões em plataformas da Internet vieram agravar outra das epidemias do século XXI — os ecrãs. Mas que consequência trará para o bem-estar e auto-estima de quem passa o dia a ver-se através de um ecrã? Se antes nos víamos ao espelho pela manhã, agora somos constantemente confrontados com a nossa imagem. “Não fomos feitos para isto”, dizem os especialistas com quem o PÚBLICO conversou sobre este tema.

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Há quem esteja em teletrabalho há um ano, fruto da pandemia de covid-19. O teletrabalho e as constantes reuniões em plataformas da Internet vieram agravar outra das epidemias do século XXI — os ecrãs. Mas que consequência trará para o bem-estar e auto-estima de quem passa o dia a ver-se através de um ecrã? Se antes nos víamos ao espelho pela manhã, agora somos constantemente confrontados com a nossa imagem. “Não fomos feitos para isto”, dizem os especialistas com quem o PÚBLICO conversou sobre este tema.

O psicólogo Albert Bandura, da Universidade de Stanford, nos EUA, chamou-lhe, em 1978, a teoria da auto-regulação. A psicóloga clínica Teresa Espassandim usa-a como base para explicar a “sobrecarga de informação” que temos recebido, fruto da fadiga de Zoom e “como esta interfere com a imagem corporal”. A especialista afirma que “estamos sempre com a atenção dividida”, o que “aumenta o nosso esforço cognitivo para processar a informação”.

Além de “cansar bastante”, “gera angústia e ansiedade”, sublinha Teresa Espassandim ao PÚBLICO. Nas relações interpessoais comuns não estamos constantemente “a ser observados” e, acrescenta, “também não somos feitos para observar os outros”. Nas plataformas digitais de reunião além de vermos a imagem dos outros, “temos a nossa imagem que é devolvida” constantemente. É como a experiência de passar junto a uma montra e vermos o nosso reflexo, só que agora são “horas seguidas durante o dia de trabalho”. O resultado é “uma constante comparação social”, que também pode ser “comparação corporal”, analisa a especialista.

Esta comparação gera angústia e ansiedade, “mesmo que as pessoas não tenham consciência disso”. Estarmos sempre a comparar-nos a quem está do outro lado do ecrã, activa um mecanismo de auto-regulação — a teoria de Bandura. Inevitavelmente, corrigimos a cada minuto a nossa postura, ajeitamos o cabelo, vemos se o fundo está apropriado. Este comportamento, assinala Teresa Espassandim, “aumenta o esforço cognitivo” e “está muito próximo do multi-tasking”. Consequentemente, “desfocamos daquilo que está a ser dito”.

Se para alguns, não passa precisamente de um esforço cognitivo, para outros “com maior vulnerabilidade” e “níveis de auto-estima diferentes”, a imagem que vêem no ecrã ainda gera vulnerabilidades acrescidas. A dismorfia corporal pode então ser uma consequência desta exposição permanente. Um pequeno detalhe — quer seja um sinal no rosto, as olheiras, o tamanho da testa, a gordura no pescoço — passa a ser “exacerbada como se fosse a mais saliente das características”, aponta a psicóloga.

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UNSPLASH/Chris Montgomery

Teresa Espassadim aconselha então a adoptar estratégias que ajudem “a não carregar um espelho permanente”. Quem não se sente confortável com o que vê, pode pôr um post-it à frente do “quadrado” onde aparece a sua imagem. No entanto, o ideal seria reduzir a quantidade de reuniões Zoom ou, pelo menos, fazê-las mais curtas e mais espaçadas, de forma a evitar “esta exposição continuada”. Este multi-tasking permanente “é um esforço enorme”, reforça a psicóloga. “Quanto mais cansados, mais difícil é gerir as emoções, o olharmos para a nossa imagem e não gostarmos.”

Maquilhagem ou cirurgia estética

Como consequência de “carregar um espelho permanente”, as pessoas começaram a preocupar-se mais com a imagem e a procurar mudar os defeitos através de intervenções estéticas? A maquilhadora profissional Inês Franco tem notado “muito maior preocupação com a imagem”. Conta como há alguns dias teve três mil pessoas a assistir a um directo de maquilhagem no Instagram e como a sua caixa de mensagens está repleta de pedidos de conselhos para disfarçar as olheiras ou os poros.

A maquilhadora sublinha que além da crescente preocupação com a imagem, “muita gente que está em casa aproveita que tem tempo, para corrigir coisas que nunca tinha reparado” ou aprender novas técnicas. Inês Franco alerta, no entanto, para o facto de os telemóveis deformarem a imagem.

Também Manuel Caneira, coordenador de Cirurgia Plástica, Reconstrutiva e Estética no Hospital CUF Descobertas e Hospital CUF Tejo, em Lisboa, assinala que “muitas pessoas não se gostavam de ver da forma como a câmara as captava e transmitia as suas interacções”. “Naturalmente que muitas dessas situações se deverão a posicionamento da câmara ou condições de luz realçando aspectos menos glamorosos de cada um”, analisa o docente da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

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UNSPLASH/Ana Itonishvili

Este “fenómeno” de maior exposição à própria imagem terá levado “algumas pessoas a procurar opinião de especialistas em cirurgia plástica”, nota Manuel Caneira. Em termos globais, no entanto, o especialista garante que o aumento de intervenções não terá sido exponencial, sobretudo porque “o acesso a cirurgias viu-se limitado pela necessidade de gestão criteriosa de recursos humanos e materiais”.

Ainda assim, o professor universitário explica que “foi notória a vontade de algumas pessoas realizarem cirurgia estética”, sobretudo pelo facto de estarem em casa em teletrabalho. “Minimizam, assim, a necessidade de ausência laboral ou, por outro lado, permite uma recuperação mais discreta após a cirurgia sem necessidade de o divulgar a terceiros”, reconhece.

Continuam a ser sobretudo as mulheres de meia-idade a procurar as intervenções estéticas, analisa o professor universitário. “Habitualmente as intervenções mais solicitadas, para além de infiltrações com ácido hialurónico e toxina botulínica, são a lipoaspiração, mamoplastias de aumento e redução, abdominoplastias e intervenções palpebrais”, detalha.

Manuel Caneira conclui que é “difícil responder” se estamos mais preocupados com a nossa imagem: “Se, por um lado, os meios audiovisuais vieram a tornar mais notório algum aspecto físico de que não gostamos, a pandemia permitiu que muitas pessoas reflectissem um pouco sobre as suas prioridades e provavelmente algumas terão relativizado alguns dos seus problemas.”