De branca para brancos: rigor e justiça

O raciocínio simplista e literal que assume que se a expressão racismo deriva de “raça” remete então para qualquer discriminação a este pretexto, no melhor cenário vem de uma posição de ingenuidade e desconhecimento, no pior patrocina desinformação.

No rescaldo da disputa à mitificação do tenente-coronel Marcelino da Mata, ouvimos responsáveis políticos e formadores de opinião activar um ideário imperialista e racial, que se legitima a admoestar e ameaçar devolver à condição de inferioridade os traidores da pátria, neste caso o activista anti-racista português, Mamadou Ba. Num debate, transmitido pelo canal TVI24, procurei o que tem sido sistematicamente impossível: passar dos casos polémicos e dos sound-bytes das redes sociais. Introduzi o entendimento científico, não o meu pessoal, do racismo enquanto projecto político e económico e procurei distingui-lo dos fenómenos de preconceito e discriminação étnico-racial, que reconheci universais e praticados também de não-brancos para brancos.

A minha tentativa de esclarecimento foi reduzida ao sound-byte, pois claro, simplista e descontextualizado não há racismo de negros para brancos”, numa campanha de reacionarismo e negacionismo pelo espaço digital. Importa-me tirar partido da atenção que este episódio gerou, não defender-me ou ripostar, e que as ideias se debatam, sem vícios antigos, com honestidade e sem táticas de obscurantismo. 

Socializamos num tabu sobre o tempo colonial que nos coloca numa posição de cegueira, ignorância e romantização, e que actuou, desde cedo, na identidade e memória colectiva, servindo para legitimar a ocupação e a guerra para lá dos limites do defensável - fomos os últimos a abolir a escravatura, mantivemos formas legalizadas de trabalho forçado e segregação, e fomos os últimos a libertar as colónias. Continua a servir para nos isentar de um exercício crítico e proteger a auto-estima da nação. Seria de esperar que intelectuais e responsáveis políticos não se opusessem à informação que permite superar esta ignorância.

Não trago os exemplos de Nuno Melo e João Miguel Tavares, porque me interessa atacá-los, antes pelo quão representativos da opinião de tantos outros e pelas responsabilidades que detêm. Pergunto ao João Miguel Tavares onde ouviu que eu defendia que um “negro está impedido de ser racista”? Se sabe que Mamadou citou Frantz Fannon sobre a “morte do homem branco”? E se vê proporcionalidade entre uma petição de “30 mil subscrições” com uma ameaça de expulsão/deportação, e críticas à sua participação como cronista?

Ao Nuno Melo pergunto se é por desconhecimento ou tática que circunscreve a escravatura ao período entre os séculos XV e XVIII e o colonialismo a uma história remota, e que subtrai à escravatura praticada pelos portugueses a praticada por outros? Estas afirmações distorcem o que foi dito, num caso, e alimentam o ruído e a desinformação, nos dois. Colocam o racismo num plano de proporcionalidade com outras agressões sociais inaceitáveis, subestimam-no e às suas vítimas e escusam a responsabilidades de o combater sistémica e institucionalmente.

O raciocínio simplista e literal que assume que se a expressão racismo deriva de “raça” remete então para qualquer discriminação a este pretexto, no melhor cenário vem de uma posição de ingenuidade e desconhecimento, no pior patrocina desinformação. As “raças”, sabemos, não têm cabimento científico na espécie humana. O racismo e a racialização são, por isso, processos de construção social e de organização política e económica. Assim aconteceu desde que a sociedade se estratificou com base numa hierarquia de raças humanas, temporalmente suportada pela “ciência” da eugenia, que colocou a branca (sublinho, BRANCA) no topo da linhagem filogenética e a não-branca abaixo desta.

Afirmá-lo assertivamente não é um preciosismo intelectual, nem uma opinião. Sou cientista social e reconheço a natureza disputável e parcial do conhecimento, mas conheço também o processo de o desqualificar, nas áreas pouco convenientes ou que transgridem a norma imposta, e de o reduzir a ideologia, matéria de opinião ou fetiche. De onde vem o apego à necessidade de desmentir o racismo ou qualquer outra forma estrutural de desigualdade e discriminação, é a pergunta. Parece haver quem acredite que se somarmos todos os impérios escravocratas às formas contemporâneas e internacionais de violação de direitos humanos, xenofobia e etnicismo, garantiremos uma concessão moral para continuar projectos estruturais de desigualdade e racismo. Este raciocínio é, intelectual e eticamente, frágil e um veículo de injustiça social.

Para que possamos afirmar que o racismo atinge a todos por igual e não tem cor”, será necessário que uma civilização não-branca: (i) monte um sistema de enriquecimento baseado no trabalho escravo branco (ou de outra etnia não-branca), que o pratique à escala transatlântica; (ii) financie uma campanha de propaganda científica (que inverta o legado dos estudos das raças humanas); (iii) impregne a cultura de imaginários de inferiorização e criminalização de brancos e de superioridade de não-brancos, (iv) mantenha estes empreendimentos até ao século que nos precede; (v) teime em modernizá-los e desmenti-los, mantendo actual um sistema em que a cor branca e os seus costumes, religiões e conhecimento são motivo sistemático de agressão e exclusão nas várias instituições e circunstâncias do quotidiano. Se é necessário afirmar que, nesse dia e perante esse cenário, o racismo será recíproco e que defenderemos as vítimas de todas as cores, aqui fica o compromisso. Até lá, gostava que ficássemos em paz com isto.

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