Kiko & the Blues Refugees: um disco para regressar a casa

Chama-se Threadbare e é o álbum de estreia do mais recente projecto de Kiko Pereira, reflectindo estes tempos que vivemos. É lançado este sábado nas plataformas digitais.

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Kiko (ao centro) & the Blues Refugees ANABELA TRINDADE

É a mais recente aventura de Kiko Pereira, cantor, compositor e professor com uma carreira ligada em grande parte ao jazz: chama-se Threadbare, é o primeiro álbum da formação Kiko & the Blues Refugees e é lançado este sábado nas plataformas digitais, seguido de edições em CD (já na próxima semana) e em vinil (a anunciar em breve).

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É a mais recente aventura de Kiko Pereira, cantor, compositor e professor com uma carreira ligada em grande parte ao jazz: chama-se Threadbare, é o primeiro álbum da formação Kiko & the Blues Refugees e é lançado este sábado nas plataformas digitais, seguido de edições em CD (já na próxima semana) e em vinil (a anunciar em breve).

O dia escolhido, não por acaso, foi o do aniversário de Francisco “Kiko” Pereira, 13 de Fevereiro. “Achei giro, oferecer uma prenda em vez de receber”, diz ele ao PÚBLICO. Nascido em Newark, nos Estados Unidos, em 1970, mudou-se com a família para Portugal em finais da década de 70. Estudou na ESMAE e na Escola de Jazz do Porto, cidade onde vive, e tem actuado com várias orquestras e big bands. Professor de canto e técnica vocal, foi nessa qualidade que participou, entre 2011 e 2015, em programas televisivos como Operação Triunfo, A Voz de Portugal ou The Voice Portugal.

O fim no princípio

O primeiro disco a solo, Raw, foi editado em 2003. E em 2012 gravou L’USA (fazendo um trocadilho com a palavra “lusa” e a sigla dos EUA em inglês), este com o projecto Kiko & the Jazz Refugees, ao qual foi buscar o nome para a banda actual. “Acabei por ‘ressuscitar’ aquele nome, pela simetria e a continuidade.” Com Kiko Pereira, completam os Blues Refugees os músicos António Mão de Ferro (guitarras), Jorge Filipe Santos (teclados), Carl Minnemann (baixo) e João Cunha (bateria). Além deles, Threadbare tem ainda as participações de Marta Ren, BJ Cole, Mila Dores, João Andresen e Rafaela Alves.

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Dos Jazz Refugees aos Blues Refugees: as capas de L'USA (2012) e Threadbare (2021)

O disco abre com This is the end of me (e fecha com uma réplica, The end, again), a lembrar a ambiência do The End dos Doors: “Não foi intencional. Eu escrevi essa canção cerca de uma semana antes de irmos para estúdio. Nasceu de uma conversa que tive com familiares, com o meu pai, estivemos a olhar para trás, a ver onde estávamos neste momento — estas coisas da pandemia levam-nos a pôr em perspectiva a nossa vida, o que fomos e o que fizemos —, e nem sequer sabíamos se o tema ia ser gravado. Só no final da sessão é que decidimos tentar.”

Acabou por dar certo: “É daqueles momentos em que sentimos que os planetas estão alinhados e tudo faz sentido. Mais tarde é que o António [Mão de Ferro] falou de uma slide guitar e eu pensei logo no BJ Cole. Consegui entrar em contacto com ele, ele ouviu o tema, gostou muito e foi o pormenor (o ‘por maior’) que faz esse ambiente.” Já a voz de Marta Ren surge em dueto com Kiko na canção Sittin’ and wishin’: “É uma força da natureza”, diz Kiko. “Quando escrevi a canção, achei que devia ser um dueto e pensei na Marta. Por isso escrevia-a a pensar na voz dela e na energia que ela traz.”

Ouvir o mundo em volta

Os temas do disco ajustam-se à actualidade, sendo uma constante destas composições: “Não consigo abstrair-me daquilo que me rodeia. Por exemplo, o Fake news surgiu quando eu estava no aeroporto e ouvi alguém atrás de mim dizer ‘Do you believe in fake news?’ Achei que tinha uma certa musicalidade e comecei a puxar por esse fio e a canção fez-se ali. O Giver também foi algo que surgiu muito naturalmente. Estava a ler uns poemas de James Baldwin, The Giver, e apropriei-me descaradamente de parte de um deles, ‘If they cannot claim it, if it is not there’. É aquela ressonância que sentimos quando algo nos acorda para situações para as quais não estamos demasiado sensibilizados. E foi antes da pandemia, porque já se via muita gente a dormir debaixo da ponte. Depois o vídeo veio como resposta a um apelo que nós queríamos fazer em tempo de confinamento. Daí pedirmos fotos e vídeos a amigos e amigos de amigos.”

Canções como Sugar for your Instagram servem também como alerta “Tenho uma certa dificuldade em compreender qual é a necessidade que as pessoas têm de apagar a realidade e apenas fazer um reenquadramento dos tempos em que vivemos. Não é uma crítica, não quero ser moralista, mas é algo que define os nossos tempos. É bom haver momentos em que podemos respirar um pouco, até porque há uma voragem noticiosa constante: o que é verdade, o que é mentira, o que é intencional, o que é fictício. É bom respirar um pouco de ar puro, mas não viver em função disso.”

Influências americanas

O título do disco Threadbare (de gasto, puído, batido) é também intencional. “O que atraiu para este título foi, em primeiro lugar, a própria sonoridade da palavra: é melíflua, escorrega pela língua. E fazia sentido com aquilo que é a nossa banda, somos todos músicos maduros que nos vamos ‘despindo’ e deixando cada vez mais à mostra aquilo que nos constituiu. Tem a ver muito com essa honestidade.”

Threadbare é também reflexo das suas influências musicais. Quando Kiko veio para Portugal, no final da década de 70, tinha 9, 10 anos. “Mas a matriz anglo-saxónica já estava muito presente. Há um nome que é consensual, porque foi a inspiração para ser abrangente e múltiplo: Frank Zappa. Comecei a ouvi-lo muito novo, por intermédio da minha irmã. Não havia uma linha condutora, havia apenas uma linha. É claro que sou bastante americano naquilo que ouço, gosto de Tom Waits, do punk americano dos anos 70, 80, rock’n’roll, blues, claro, e jazz. É um pouco como o tempo, quando abro a janela: só aí sei o que quero ouvir e o que me inspira.”

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Kiko & the Blues Refugees fotografados para a divulgação de Threadbare ANABELA TRINDADE

Muitas coisas por fazer

Este álbum é, por isso, para Kiko Pereira, “quase como um regresso a casa. Quando comecei a ouvir música, a par de Zappa, ouvia também Led Zeppelin, Deep Purple, Black Sabbath, e tudo isso tem uma matriz bluesy. E comecei a cantar com a noção de que a pentatónica estava sempre presente. Tenho um amigo que dizia que eu devo ter nascido com a blue note na cabeça, aparece por todo o lado. Quando comecei a compor este disco e começámos a tocá-lo, senti esse regresso a casa, porque há aqui muitas ligações com o passado. Por exemplo, o azul da capa é o azul da capa do Blue Train [álbum de John Coltrane, de 1957]. Gosto de fazer estes pequenos jogos. No L’USA, por exemplo, na capa que fiz com massas de letras, há 40 palavras escritas. Era mesmo uma sopa de letras. São pormenores importantes, referências que estão lá.”

E que terão maior relevância nos dias que vivemos, ainda sujeitos a confinamento: “Quando pomos a vida em perspectiva ficamos com a sensação de que, por mais que tenhamos feito, há milhares de coisas por fazer. Mas o que é importante é estarmos em paz com isso e não em stress constante. E neste momento sinto uma certa paz no sítio onde estou, musicalmente. As coisas devem completar um ciclo e acho que estou a completar o meu. Veremos.”