O direito a desligar em tempos de confinamento: para quando uma vacina?

Teletrabalho não pode ser sinónimo de ausência de limites no período normal de trabalho ou de trabalhos suplementares que apenas o são de nome e não de retribuição. Os trabalhadores não podem pagar com a sua saúde as lacunas, incertezas e erros legislativos sem fim.

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Nelson Garrido

Falar em covid-19 é falar de infectados, de mortes, de vacinas e, last but not least, é falar de teletrabalho. Sim, aquele instituto que permaneceu esquecido durante muito tempo no quadro legislativo do Estado português. Contudo, também o direito à desconexão continuou intacto no pensamento e discussão doutrinária e, em boa verdade, nunca passou das poucas palavras e linhas escritas a norma legal expressa. 

Todavia, bem vistas as coisas, apesar de a completude do teletrabalho ser conhecida apenas pela comunidade jurídica mais atenta, este assume um carácter geométrico, de índole variável, e um mecanismo de flexibilização do tempo e prestação de trabalho vertido no artigo 165.º do Código do Trabalho, visto que, regra geral, estando o trabalhador a prestar o trabalho no seu domicílio, este acaba por alicerçar duas vidas: a sua vida laboral e a familiar ainda que, muitas vezes, não saiba em qual das duas se encontra atendendo à abrupta e tendencial sobreposição das mesmas.

Não existem dúvidas de que o trabalhador tem direito a desconectar-se (veja-se para o efeito o artigo 59.º/1/alíneas b) e d) e n.º 2/alínea b) da Constituição da República Portuguesa), quer esteja a trabalhar na empresa fisicamente, quer esteja no prolongamento do seu eu laboral dentro dos limites geográficos da sua própria casa.

Contrariamente ao que acontece, o norte do legislador laboral deveria apontar para a sua previsão expressa como um dever ou obrigação do empregador, pois, por um lado, serviria para (re)educar mentalidades e relações laborais a este propósito e, por outro lado, o âmbito de aplicação prática deste direito não se cingiria apenas ao instituto do assédio, mas poderia relevar para outros institutos, como o da segurança e saúde no trabalho.

É notória a necessidade de (re)pensar este instituto. Chega de esquecimento ou cegueira perante um problema que existe e que, tal e qual como o azeite, vem sempre ao de cima em tempo de confinamento, por via da aplicação geral do teletrabalho. O trabalhador precisa de confiar que não será invadido pelas ramificações do império empresarial e digital no seu tão aclamado tempo de descanso. 

Nem é preciso ir muito longe, basta observar o nosso vizinho espanhol que já começou a dar os primeiros passos nesta matéria, ainda que com algumas imprecisões e receios. Não obstante, cremos ser caso para dizer: olhos bem abertos para os outros, mas não fechados para as controvérsias da actual praxis interna laboral, agravada pela crise pandémica. 

Por isso, caríssimo legislador, se nos estás a ouvir, é tempo de mudança e intervenção no regime do teletrabalho e das suas influências no campo do tempo de trabalho. Teletrabalho não pode ser sinónimo de ausência de limites no período normal de trabalho ou de trabalhos suplementares que apenas o são de nome e não de retribuição. Os trabalhadores não podem pagar com a sua saúde as lacunas, incertezas e erros legislativos sem fim. É tempo de meter os “laboratórios” a pensar e começar o plano de vacinação no sentido da defesa e imunidade para uma desconexão eficaz. O trabalho vencerá. A produtividade vencerá. E, diga-se, as famílias dos trabalhadores também agradecem. 

Finalmente, o legislador não pode ser cúmplice ou causa do divórcio entre o teletrabalho e o direito à desconexão, não pode deixar que este direito (ou dever) que dignifica o ADN do Direito do Trabalho seja sentenciado à morte. É preciso mais, é preciso coragem para mudar, é preciso ir para além do óbvio.

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