Justiça democrática

O direito democrático revela muitas virtualidades. Por ele se está a defender um modus vivendi, constituições cidadãs, afinal a Civilização universal de hoje. É defender as “muralhas da cidade”.

Justiça democrática é conceito que coloca problemas, até deontológicos. Para alguns, a Justiça deveria ser etérea, pairando sobre as questões políticas, como democracia ou não democracia. Há muito erro e alguma razão nesta perspetiva.

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Justiça democrática é conceito que coloca problemas, até deontológicos. Para alguns, a Justiça deveria ser etérea, pairando sobre as questões políticas, como democracia ou não democracia. Há muito erro e alguma razão nesta perspetiva.

Por um lado, nenhuma Justiça é imune às influências sociais e políticas, e tanto pode estar ao serviço de um estado de coisas constitucional, pluralista, com liberdade, um Estado de direito democrático, como, pelo contrário, ser um instrumento ao serviço de totalitarismo, autoritarismo, ditadura. Nesse sentido, os que acreditam, ou nos querem fazer acreditar, numa Justiça “pura”, estão errados. Não há Justiça pura. Há sempre uma Justiça para um Estado de Direito democrático ou, alternativamente, uma “Justiça” contra ele. Esta não será vera Justiça.

Por outro lado, é verdade que a relação entre Direito e Estado deve ser tranquila (com a ajuda dos freios e contrapesos da separação dos poderes) e a inserção da juridicidade no quadro de uma democracia deve ser normal – quase como se fora evidente e necessária. Porém, esta habitualidade do casamento entre Direito e poder político organizado está a quebrar-se, com inauditas violações, mesmo em países onde tal se acreditava impossível, e com o agigantamento (ajudado por comunicação social e redes sociais) de forças votadas à destruição do legado de 1789 (ainda que “liberais” se possam dizer). Tais focos de instabilidade, ataques à Democracia e à Justiça, abalam a tranquilidade jusdemocrática.

Não foram essas anomalias, seria defensável, hoc sensu, alguma despolitização do Direito, na medida em que ele seria o espelho de situação estavelmente democrática. E não se trataria apenas de democracia formal, política só, mas também social, cultural, económica, ecológica. Nesse contexto, pode pensar-se num direito “não ideológico”, porque já embebido em caldo de cultura ideologicamente “consensual” – em democracias representativas, pluralistas, estados sociais. Infelizmente, tem-se regredido, pelo mundo, relativamente a essa estabilidade democrática, e quando o Direito, simplesmente, afirma coisas que deveriam ser banais, como dignidade, igualdade perante a lei (e mais que isso), separação dos poderes, ou direitos fundamentais e humanos – logo se levantam fantasmas reencarnados a ironizar, criticar, e até já a vilipendiar, desde logo arguindo que se trata de “ideologia”, que pintam com cores infernais.

Na medida em que estamos confrontados com essa descoberta da ideologia, temos que responder que a ausência de opção pela liberdade, dignidade, fraternidade, etc., é obviamente ideológica. Não se foge à omnipresença da ideologia.

O direito democrático revela muitas virtualidades. Por ele se está a defender um modus vivendi, constituições cidadãs, afinal a Civilização universal de hoje. É defender as “muralhas da cidade”.

Ora, dentro dessas muralhas, que o Direito democrático defende, há uma sociedade atomizada, em que egoísmo, consumismo, salve-se-quem-puder, foram enfatizados por uma economia divorciada da necessária função social, em que as pessoas foram reduzidas a uma nova escravatura e se autoescravizam até. Fumos ideológicos contribuem para que haja uma falsíssima consciência de muitos sobre a sua verdadeira condição. Colarinho branco de modo algum é sinal de liberdade ou independência. Um libambo orna o pescoço de intelectuais, executivos, funcionários, até gestores e pequenos empresários.

Neste contexto, há nas sociedades democráticas um crescendo de populismo que encontra cada vez mais eco em massas pouco formadas civicamente (o economicismo nunca teve a educação como prioridade, e muito menos a cívica e política, que poderia criar cidadãos vigilantes e críticos) e ao mesmo tempo sofrendo as agruras de um modelo social global de pilhagem, irresponsabilidade, desregulação e ganância, que obviamente apenas a poucos pode aproveitar. Apesar de tudo, o Estado de Direito democrático deu esperanças e despertou anseios.

Muitos deles não são mais que quimeras, sem apoio jurídico. Ainda que se envolvam numa artificiosa miragem de falsos Direitos Humanos – e, como “a má moeda expulsa a boa”, ficam por essa mistificação prejudicados os reais Direitos, na sua “força normativa”.

Porém, também há aspirações e desejos que, sendo legítimos e razoáveis, encontram na Constituição base para serem exigidos.

Uma dessas aspirações é, obviamente, a uma boa administração da Justiça, a qual não é uma dispensação divina ou de uma oligarquia iluminada com legitimidade própria, metafisica ou teologicamente transmitida, mas uma emanação do Povo (complexa, e que tem de ser analisada inteligentemente)

Por isso, o art. 202, n.º 1 da Constituição afirma que “Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo.”. E não é por acaso que, logo no n.º 2, ao elencar as incumbências dos tribunais, está presente a de “reprimir a violação da legalidade democrática”. Expressão forte, mas não descuido estilístico. Tem de ser forte, porque a legalidade democrática é base da Justiça fundada na demofilia. Uma Justiça democrática não é “popular” no sentido de feita diretamente pelo Povo, mas porque amiga do Povo, e em seu nome. E por isso tem de estar atenta à vida da Democracia.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico