White Riot: o motim do punk contra o preconceito revisitado no Porto/Post/Doc

Um documentário recupera a história do movimento Rock Against Racism, que, no final dos anos 1970, tentou combater a ascensão da extrema-direita no Reino Unido com o poder da música.

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Entre 1976 e 1982, o Rock Against Racism organizou concertos, editou uma fanzine e dinamizou acções de protesto contra a extrema-direita no Reino Unido DR

David Bowie atirou a gasolina para o chão: “Acho que o Reino Unido está pronto para um líder fascista. Precisamos de uma frente de extrema-direita que varra tudo dos seus pés e deixe as coisas arrumadinhas”, disse à revista Playboy em Abril de 1976, no auge da efémera fase do seu polémico personagem The Thin White Duke (mais tarde, o “Camaleão” atribuiu estes comentários e outros comportamentos erráticos ao uso “astronómico” que então fazia de cocaína).

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David Bowie atirou a gasolina para o chão: “Acho que o Reino Unido está pronto para um líder fascista. Precisamos de uma frente de extrema-direita que varra tudo dos seus pés e deixe as coisas arrumadinhas”, disse à revista Playboy em Abril de 1976, no auge da efémera fase do seu polémico personagem The Thin White Duke (mais tarde, o “Camaleão” atribuiu estes comentários e outros comportamentos erráticos ao uso “astronómico” que então fazia de cocaína).

Depois, Eric Clapton acendeu o fósforo: em Agosto daquele mesmo ano, o guitarrista – que também já pediu desculpa por este incidente mais do que uma vez – defendeu, num concerto em Birmingham, que os seus fãs deviam votar no deputado conservador Enoch Powell, notório pelas suas visões anti-imigração, se não queriam que a Inglaterra se transformasse numa “colónia preta” ou fosse tomada de assalto pelos “estrangeiros”. O músico terminou o seu discurso de ódio gritando repetidamente “Mantenhamos a Grã-Bretanha branca”, slogan do partido populista National Front.

Foi a gota de água para Red Saunders, Roger Huddle, Jo Wreford e Pete Bruno, que, em resposta, enviaram uma pequena carta a várias revistas de música do Reino Unido. Na primeira parte do documento, os amigos acusavam Clapton de ser “o maior colonialista da música”, aludindo tanto à sua ligação íntima com os blues como à sua versão da faixa I shot the sheriff (originalmente de Bob Marley e dos Wailers), que foi o primeiro sucesso comercial da carreira a solo do antigo membro dos Yardbirds e dos Cream. “Quem é que disparou sobre o xerife, Eric? De certeza que não foste tu!”, podia ler-se.

Nos últimos parágrafos, o quarteto anunciava que ia fundar um movimento cultural chamado Rock Against Racism – e sublinhava que toda a ajuda de outros cidadãos igualmente incomodados com a situação sociopolítica da Grã-Bretanha era bem-vinda. A carta foi publicada por jornais como o NME e o Melody Maker. Saunders e Huddle foram contactados por centenas de jovens fãs que estavam fartos da presença neonazi na cena punk que frequentavam. E o Rock Against Racism nasceu.

Uma ameaça que continua viva

White Riot, o documentário de Rubika Shah que é exibido no Passos Manuel esta quinta-feira (20h15), no âmbito da sétima edição do festival de cinema Porto/Post/Doc, reconstitui o papel agregador que este movimento intervencionista assumiu no final da década de 1970, num Reino Unido violento e politicamente indeciso. Entre 1976 e 1982 (o filme não vai além de 1978), o Rock Against Racism organizou concertos – promovendo sobretudo o punk e o reggae, mas apostando também no ska, no jazz, no funk ou na soul –, ajudou a montar uma digressão nacional, criou uma fanzine chamada Temporary Hoardings, concebeu grandes marchas de protesto contra a ascensão da extrema-direita e dinamizou acções em parceria com a organização Anti-Nazi League. O objectivo fundamental do grupo, chega a referir Red Saunders na longa-metragem, que vai buscar o seu nome à canção homónima dos The Clash, era “descascar a Union Jack para revelar a suástica” – e tirar partido do cariz unificador da música para juntar comunidades.

Para além de entrevistar vários dos principais membros deste colectivo – como Saunders, Huddle, a secretária Kate Webb (que se encarregava de responder às cartas dos muitos apoiantes da iniciativa e de enviar as fanzines ou os crachás do Rock Against Racism), o fotógrafo Syd Sheldon, a designer gráfica Ruth Gregory (responsável pela identidade visual colorida e arrojada da Temporary Hoardings) ou a autora Lucy “Toothpaste” Whitman, que contribuía para a publicação com artigos que davam conta das questões em volta do feminismo e da (falta de) representatividade das comunidades LGBT+ na cena punk da época –, Shah usa imagens de arquivo para mostrar o crescendo de popularidade da National Front nos anos 1970.

Os depoimentos de Martin Webster – um dos rostos desse partido e, durante muito tempo, uma das maiores figuras da extrema-direita no Reino Unido, que viria a ostracizar o deputado quando começaram a circular rumores sobre a sua homossexualidade – pintam o retrato de uma ameaça que continua viva em 2020. White Riot recupera uma entrevista televisiva antiga na qual Webster defende que, se tiver votos para isso, implementará medidas para “congelar imediatamente a imigração das pessoas de cor” e proceder à “repatriação faseada de todos os imigrantes e dos seus descendentes para as suas terras de origem étnica”. “E se eles não forem?”, pergunta-lhe o jornalista. A resposta é simples e curta: “Eles vão.”

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Paul Simonon, baixista dos The Clash, num concerto em Victoria Park, em Londres, organizado pelo Rock Against Racism e pela Anti-Nazi League em Abril de 1978. Este evento mobilizou cerca de 100 mil manifestantes que marcharam desde a Trafalgar Square em protesto contra o aumento de ataques racistas na Inglaterra Syd Sheldon/White Riot

Num período de aperto económico e discriminação acentuada – a comunidade negra de Inglaterra queixava-se de ser alvo preferencial das autoridades ao abrigo da polémica “sus law”, que conferia à polícia enquadramento legal para parar, revistar e potencialmente prender indivíduos com um “comportamento suspeito” –, o Rock Against Racism tentou usar a música como um elemento pacificador e uma ferramenta de mudança. Mas nem sempre foi fácil, mostra o documentário: certas bandas punk que partilhavam as convicções políticas de Saunders e companhia tinham fãs que se identificavam mais com os ideais da extrema-direita. A história de Jimmy Pursey, vocalista dos Sham 69, é particularmente interessante: o músico não gostava de saber que tinha nos seus (frequentemente violentos) concertos tantos rapazes interessados na National Front, mas também não queria ser um pregador para esses jovens e dizer-lhes como deviam pensar.

O filme acaba com aquela que foi a maior concentração do movimento, organizada em conjunto com a Anti-Nazi League, na sua curta existência. Em Abril de 1978, cerca de 100 mil pessoas marcharam quase dez quilómetros desde a Trafalgar Square até Victoria Park, na zona Este de Londres (uma região em que a presença e a influência da National Front eram particularmente fortes), em protesto contra o número crescente de ataques racistas em território britânico. Durante o percurso, a banda de reggae Misty in Roots deu música aos manifestantes. Chegados a Victoria Park, estes testemunharam concertos de bandas como os Steel Pulse, os X-Ray Spex, a Tom Robinson Band e os The Clash. Na actuação do grupo de Joe Strummer, Jimmy Pursey também subiu ao palco para cantar White riot.