As nefastas consequências de menosprezar o conhecimento

O professor Vítor Aguiar e Silva marcou-me “de um modo decisivo” não só por me ter possibilitado o prazer de estudar e aprofundar o conhecimento de Camões, mas também pela forma como soube transmitir o seu apreço pela Língua Portuguesa.

Creio que recebi todos os prémios que tinha de receber, mas o prémio Camões é o de coroamento de uma vida universitária como investigador da língua e da literatura portuguesas.
Vítor Aguiar e Silva, 2020

Neste tempo tenebroso de Covid 19, são muitas as vezes que lembro Os Lusíadas e os belos versos camonianos, “Onde pode acolher-se um fraco humano,/ Onde terá segura a curta vida,/ Que não se arme e se indigne o Céu sereno/ Contra um bicho da terra tão pequeno?” (Canto I), que aos meus alunos aconselhava a decorar, surpreendendo-os, sei disso, com a história do verbo que os sensibilizaria: “decorar”, do latim cor, coris, “coração”, evidenciando que, ao fazê-lo, gravariam em si algo que permaneceria.

Camões, o poeta que no mesmo poema partilha com o leitor as suas sublimes reflexões, “indício da [sua] passagem pelo mundo, resumo da sua experiência emotiva dele” (Fernando Pessoa), despertando-nos para outros interesses, ajudando a relacionarmo-nos com os outros, facilitando-nos a procura de respostas a tantas questões inerentes à nossa condição humana. De “[…]o vil interesse […]/ Do dinheiro, que a tudo nos obriga” (Canto VIII), à “glória de mandar, ó vã cobiça/ Desta vaidade, a quem chamamos Fama!// Chamam-te Fama e Glória soberana,/ Nomes com quem se o povo néscio engana” (Canto IV), passando por E ponde na cobiça um freio duro,/ E na ambição também, que indignamente/ Tomais mil vezes, e no torpe e escuro/ Vício da tirania infame e urgente” (Canto IX) ou “Na terra, tanta guerra, tanto engano” ou ainda em “quem não sabe a arte, não na estima” (Canto V), tudo é intenso e daí a sua intemporalidade, uma característica imanente a toda a arte que mais não traduz que a própria vida. Não surpreende, pois, qualquer português, que o poeta clássico, do século XVI, pela sua epopeia e pela sua sublime lírica, cuja arte e engenho são uma constante, fosse o escolhido para referenciar o Dia de Portugal, o dia da nossa Identidade.

Surpreende, no entanto, qualquer português, que um ministro, aparentemente calmo, culto e bem-falante, não escondendo o seu olhar narcisista, tão comum em inúmeros políticos, e outros, em cargos de chefia, tenha afirmado, com arrogância e levianamente, o absurdo de não pertencer ao grupo dos que apelidam a língua portuguesa de “Língua de Camões”, preferindo-lhe “Língua de Pepetela, ou de Mia Couto ou de Clarice Lispector”, pondo assim a nu a sua iliteracia literária, bem como a sua visão bafienta e bondosamente colonialista. Refiro, naturalmente, Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, de cujo ministério depende, e com alguma ironia, o Instituto Camões que tem como objectivo, acentue-se, a “promoção e divulgação da língua e da cultura portuguesas”. Relevar igualmente que o Instituto surgiu por proposta do Professor de Literatura Portuguesa Vítor Aguiar e Silva, entre outros, tendo ele coordenado o grupo de trabalho.

Como interpretará também, o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros, a designação de “Prémio Camões, ou seja, que significado lhe atribuirá? Pela certa, rir-se-á da “triste” opção porque a sua própria ignorância ostentada, sem o mínimo de pudor cultural, assim o ditará. Está efectivamente na sua natureza narcisista: um ego sublimado, mais centrado na acção do que na reflexão, a incapacidade de aceitar uma crítica ou de discutir argumentos que ponham em causa os seus, distanciando-se de todas as posições contrárias (veja-se o que ignobilmente se tem passado com o Acordo Ortográfico de 90 e a surdez aos pareceres críticos vindos de insignes estudiosos da Língua, da Literatura e da Cultura portuguesas), e ainda uma postura política treinada na procura ambiciosa do que lhe possa trazer êxito e influência (apoiante de Francisco Assis contra António Costa, acaba no lugar de relevo que lhe conhecemos). E não perderei a ocasião para revelar a minha admiração intelectual por Francisco Assis e, já agora, pela escolha de Ana Gomes, como candidata à Presidência da República, a minha candidata também!

Retomando o prestigiado “Prémio Camões” e a sua última edição (Out. 2020) atribuída a Vítor Aguiar e Silva, sublinho as palavras do Professor: “Desde os anos 60 do século passado tenho consagrado grande parte do meu trabalho intelectual ao estudo de Camões e da poesia camoniana, sobretudo da poesia lírica – mas também a poesia épica”; e ainda: “O novo acordo ortográfico tem normas que necessitam urgentemente de uma revisão. A sua aplicação resulta numa língua desfigurada nas suas raízes latinas e românicas”, concluindo continuar a escrever segundo o acordo ortográfico de 1945 pelo facto de “prezar muito” a língua portuguesa.

À dignidade e ao saber das suas palavras, outros, cujo papel foi chave na imposição desta aberração, respondem jocosamente “escrever conforme lhes dá jeito” ou consoante “o lado para o qual acordam”. É este o vil espectáculo a que temos vindo a assistir, há numerosos anos, seja na Assembleia da República seja em diferentes Governos: o gozo com um património identitário por parte de gente medíocre, gente que ostensivamente faz a apologia da ignorância e a pretende arrogantemente impor aos outros, sempre sob a ameaça de qualquer coisa. E ainda a este propósito, perguntar-se-á se o ex-constitucionalista Vital Moreira ousaria afirmar que o distinto Professor Vítor Aguiar e Silva faz parte da “pequena tribo de opositores ao AO” ou classificar os seus argumentos, acima transcritos, de “uma enorme fragilidade” ou ainda apelidá-lo de “sebastianista”, como fez, há uns meses,[1] em relação ao jornalista Nuno Pacheco, no seu excelente artigo “Enquanto combatemos o novo coronavírus, o velho ‘ortogravírus’ não pára”, traindo-se, diga-se em abono da verdade, ao ostentar a sua ignorância sobre o assunto. Será Aguiar e Silva, também para a maioria dos deputados da Comissão de Educação e Cultura, e depreciativamente, “um Velho do Restelo” (imunes à ignorância que revelam sobre o significado da venerável figura)? E o que pensar da Ministra da Cultura que considera não integrar-se na sua função a defesa da Língua Portuguesa, enquanto património colectivo, remetendo, de forma um pouco engasgada, o assunto do AO para Augusto Santos Silva, aquele que todos parecem reverenciar e temer porque, na verdade, a sociedade alimenta os narcisistas e dá-lhes palco para brilhar, fatuamente?

Lembremos as palavras de Graça Fonseca, apontando “as qualidades intelectuais e académicas, mas também [o] perfil humanista com que marcou de um modo decisivo gerações de alunos, um pouco por todos os lugares onde ensinou, bem como leitores.” Num novo parêntesis, testemunhar que, na verdade, o Professor, cuja obra acompanhou os meus estudos universitários e faz parte da minha biblioteca, me marcou “de um modo decisivo” não só por me ter possibilitado o prazer de estudar e aprofundar o conhecimento de Camões, épico e lírico, e o do Barroco, mas também pela forma como soube transmitir o seu apreço pela Língua Portuguesa. Lamentavelmente, devido ao silêncio cúmplice dos Ministérios da Cultura e da Educação, de quem se esperaria a mente e o ouvido atentos às palavras do Professor Aguiar e Silva, que eles próprios agora hipocritamente elogiam, com sorrisos e palmas, os professores, e saliento sobretudo os do Ensino Básico ao Secundário, são forçados à estupidez do AO 90 porque continuamente ameaçados de processo disciplinar, caso o não cumpram e o ensinem aos alunos.

Vivendo em democracia, damo-nos, inúmeras vezes, conta, de comportamentos próprios de regimes totalitários que silenciam e punem quem ousa contrariar os seus desígnios, quantos deles obscuros. Recuando no tempo, e a este propósito, lembramos o que aconteceu quando o Professor Aguiar e Silva, presidindo (1988-1992) à Comissão Nacional de Língua Portuguesa (CNALP), órgão consultivo do Governo, emitiu, em 1989, um parecer arrasador ao ante-projecto do AO: a extinção da CNALP (artigo 3.º do decreto-lei Nº 106 – A/92). Não é demais lembrar as palavras de Aguiar e Silva ao deixar a CNALP: “Há pontos escandalosos do ponto de vista técnico-linguístico, como o da facultatividade ortográfica, que coloca grandes problemas de natureza pedagógico-didáctica.”

Conhecemos as nefastas consequências que advêm do facto de o poder político, independentemente de quem o integre, menosprezar o Conhecimento, seja em que área for, repudiando conselhos, chamadas de atenção e críticas fundamentadas em Estudo. Que o apelo expresso nos versos de Camões possa ser um motivo de reflexão. Nesse sentido, foram escritos: “Os mais exprimentados levantai-os,/ Se, com a experiência, têm bondade/ Pera vosso conselho, pois que sabem/ O como, o quando, e onde as cousas cabem.” (Canto X).


[1] “Sebastianismo Ortográfico”, publicado no Blogue Causa Nossa, de 17 de Abril de 2020.

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