Não somos amigos, somos colegas

Há relações menos íntimas e mais ausentes, mas teimamos em vedar-lhes o acesso à nossa casa porque nos ensinaram a colocar as pessoas em gavetas estanques, como se o nosso coração tivesse de ser fragmentado em prateleiras e a amizade não se pudesse multiplicar.

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Dizemos que são só colegas de trabalho, mas é com eles que partilhamos a maioria das horas sufocadas do dia. É deles que sabemos os detalhes, os vícios e tiques que escapam aos alheios. O João não come hidratos, a Carla é sempre um café curto, o Pedro esquece-se da luz ligada e é um dia mau quando a Sandra só tira os óculos escuros perto das 11h. O Paulo anda na luta por um filho, a Anabela perdeu a mãe aos 16. Conhecemo-los pelo andar, pela forma como batem a porta, a velocidade a que teclam, o perfume que deixam em cada sala, a gargalhada que entoam. Brindamos a nascimentos e assistimos a funerais, inquietamo-nos com os seus problemas e sabemos de cor as datas dos aniversários.

Às vezes azedamos, amuamos e remoemos o último aumento. Até nos rivalizamos. Competimos. Sentimos-lhes a pulsação, prevemos as reacções, o que os fere e o que os motiva. Talvez não tenhamos sido sempre correctos, transparentes e justos, não os conseguimos defender como mereciam, não desviamos os olhos do ecrã para dizer obrigada ou para retribuir aquele desejo sincero de “Boa sorte. Estou a torcer por ti”.

O mundo não é perfeito e nem todas as pessoas são boas, mas a distância que vai da amizade ao companheirismo não se mede com gráficos ou ponderações. É a soma dos detalhes que nos acarinham, da boca que se adoça, de uma memória em comum. É uma família que não se escolhe, mas com a qual se aprende a lidar, tal como a outra. Os que voam, os que passam sem nos tocar, os que não gostam de nós, os tímidos, os que não se relacionam, mesmo estes não ficam de fora desta genealogia que nos liga.

Há relações menos íntimas e mais ausentes, mas teimamos em vedar-lhes o acesso à nossa casa porque nos ensinaram a colocar as pessoas em gavetas estanques, como se o nosso coração tivesse de ser fragmentado em prateleiras e a amizade não se pudesse multiplicar. Precisamos de rótulos para organizarmos as nossas relações, como nos damos, a intensidade e forma como o fazemos. Vivemos a conter as nossas expressões de estima com quem já nos levantou do chão, repartiu o lanche ou fica fora de horas para nos dar a mão.

A última reunião foi difícil. Demoramos a chegar a um consenso, partimos pedra e esticamos a corda para além do razoável. Proferiram-se algumas verdades e dispararam-se acusações na medida inversa do sensato. Teria sido mais fácil se nunca tivéssemos tomado aquela cerveja ao final do dia, mas o sol puxava por um sorriso e foi o que fizemos. Confidenciamos inseguranças, transparecemos a pessoa que somos para lá do blazer escuro. E quando pensamos que perdemos, que enfraquecemos, afinal ganhamos... Porque a contabilidade dos afectos é sempre desorganizada e o balanço positivo.

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