Covid-19: a sindemia que nos afronta e desafia

Não importa quão eficaz irá ser um tratamento ou qual a proteção de uma vacina, porque a busca de uma solução puramente biomédica para a covid-19 será um falhanço e não teremos aprendido nada.

O termo “sindemia” (sinergia + pandemia) foi cunhado nos anos 1990 pelo antropólogo médico americano Merrill Singer. Trabalhando em grupos com sida, Singer verificou que a síndroma devastava uma comunidade porto-riquenha de Hartford e utilizou o acrónimo SAVA (Substance Abuse, Violence and AIDS) para suportar o conceito de que a sida grassava num contexto social de droga e violência que potenciava a disseminação da infeção, a sua gravidade e agravava o seu prognóstico.

Em 2017, o mesmo Singer e co-autores desenvolvem o modelo sindémico de saúde onde enfocam o complexo biossocial, que consiste na interação, co-apresentação ou na sequência de doenças e nos fatores sociais e ambientais que as promovem e potenciam os seus efeitos negativos.

Esta abordagem da conceção de saúde e prática clínica reconfigura a história convencional da compreensão das doenças como entidades individuais, separadas de outras e independentes do contexto social. Em vez disso, todos esses fatores tendem a interagir sinergicamente de várias e consequentes formas, tendo um impacto substancial na saúde de indivíduos e populações inteiras, e através deles na sociedade, e só podem ser abordados de forma integrada a favor de toda a comunidade.

Num artigo publicado no final deste mês de setembro no The Lancet, uma das mais prestigiadas publicações científicas do mundo, Richard Horton, editor-chefe da revista, vem exatamente focar a atenção de toda a comunidade para esta questão.

Ele argumenta que a covid-19 não é uma peste como qualquer outra já vista no passado e que, por isso, merece uma abordagem diferente. A designação de sindemia seria, por isso, mais adequada: o vírus não atua sozinho, mas compactuando com outras doenças. E a desigualdade social tem um papel-chave na sua disseminação.

A natureza sindémica da ameaça que enfrentamos significa ser necessária uma abordagem mais global e integrada se quisermos proteger a saúde das nossas comunidades.

O artigo repercutiu em alguns dos principais meios de comunicação internacionais e ganhou eco no mundo científico. A Sociedade de Medicina de Catástrofes e Saúde Pública Americana, por exemplo, defendeu, em artigo intitulado “Covid-19 à Covid-20”, que a resposta institucional à atual crise seja baseada num “pensamento sindémico, e não pandémico”.

A palavra “sindemia” vai, deste modo, entrar agora no léxico do debate sobre a covid-19, ao lado de termos como “lockdown”, “imunidade de grupo” e “achatamento da curva”, antes praticamente desconhecidos do grande público.

À medida que o mundo se aproxima do milhão e meio de mortes por covid-19, é importante enfrentar o facto de que a atual abordagem é demasiadamente restrita para gerir e ainda menos para ultrapassar a crise do novo coronavírus.

Até agora, todas as intervenções se concentraram em cortar linhas de transmissão viral. A “ciência” que tem guiado os governos é baseada principalmente em modelos de combate a epidemias que enquadram a atual emergência sanitária num conceito de peste que tem séculos de existência.

“Mas a história da covid-19 não é assim tão simples”, argumenta o editor-chefe da Lancet. “Duas qualidades de doenças estão a interagir em populações específicas – a síndrome respiratória aguda severa (Sars-Cov-2) e uma série de doenças não transmissíveis (DNTs).” Estas condições estão agrupadas em grupos sociais de acordo com padrões de desigualdade profundamente enraizados nas nossas sociedades. A agregação dessas doenças num contexto de disparidade social e económica exacerba os efeitos adversos de cada doença isoladamente.

Uma epidemia sindémica, ou uma sindemia, contém em si a ideia que o vírus não age isoladamente, tal como um vilão solitário que simplesmente espalha pneumonias e falência generalizada de órgãos nos alvos que atinge. Ele tem cúmplices sérios, como a idade e o seu contexto social, a obesidade, diabetes, doenças cardíacas e condições sociais, que agravam a doença e prognóstico do atingido.

A questão maior é que muitos dos “cúmplices” da covid-19 já são epidemias por si só em algumas sociedades. A obesidade, por exemplo, é um fator de risco para o desenvolvimento de diabetes e doenças cardíacas. A diabetes e a hipertensão são epidemias nas sociedades ocidentalizadas. Um artigo recente da revista Obesity Reviews, por exemplo, concluiu que as pessoas obesas têm uma probabilidade 50% maior de morrer de coronavírus.

No caso da covid-19, como argumenta o editor da Lancet, atacar doenças não transmissíveis é um pré-requisito para um combate bem-sucedido à atual crise. “O número total de pessoas que vivem com doenças crónicas está a crescer. Tratar a covid-19 significa tratar também a hipertensão, obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e respiratórias crónicas, e cancro.”

Afirma ainda ser especialmente importante prestar maior atenção às doenças não transmissíveis em países mais pobres, algumas fatais tais como a epilepsia, doença renal, anemia falciforme. Para os mil milhões de pessoas mais pobres do mundo, as DNTs representam mais de um terço do seu fardo como doença. O artigo de Singer afirma que a disponibilidade de intervenções acessíveis e económicas nestas doenças, durante a próxima década, poderia evitar quase cinco milhões de mortes entre as pessoas mais pobres do mundo. E isso sem considerar os riscos reduzidos de morrer por covid-19.

A mais importante consequência de ver a covid-19 como sindemia é sublinhar a sua componente social. A vulnerabilidade dos idosos; das comunidades étnicas minoritárias tal como da gente dos bairros degradados; dos trabalhadores essenciais que são comummente mal pagos, das condições de vida e transportes das periferias para as grandes cidades; apontam para uma verdade até agora escamoteada: não importa quão eficaz irá ser um tratamento ou qual a proteção de uma vacina, porque a busca de uma solução puramente biomédica para a covid-19 será um falhanço e não teremos aprendido nada.

A menos que os governos elaborem políticas e programas para reverter profundas disparidades, as nossas sociedades nunca serão verdadeiramente seguras contra a covid-19 e as pandemias que se lhe seguirão. Como Singer escreveu em 2017, “Uma abordagem sindémica oferece uma abordagem muito diferente à medicina clínica e à saúde pública por mostrar como uma abordagem integrada para a compreensão, prevenção e tratamento de doenças pode ter muito mais sucesso do que simplesmente controlar a doença epidémica ou tratar eficazmente um doente.”

Horton acrescentou mais uma vantagem. “As nossas sociedades precisam de esperança. A crise económica que avança na nossa direção não será resolvida por um medicamento ou uma vacina. Nada menos que a mobilização coletiva e consciência nacionais por uma causa são necessários.”

Ver a covid-19 como uma sindemia vai envolver-nos numa visão mais ampla e nacional, abrangendo a educação, emprego, habitação, condição dos idosos, segurança, transportes, alimentação e meio ambiente.

Ver a covid-19 apenas como uma pandemia exclui tal perspetiva mais ampla e necessária que nos vai ensinar, em boa hora, para onde atirar as toneladas de dinheiro sem deixar tudo igual.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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