Da confusão

Esperamos escapar ao SARS-CoV-2, mas não estou segura de que consigamos escapar à demência.

Pedem-nos para “repensar” o Natal, o que significará abdicar de um dos poucos momentos que nos iam sobrando para o encontro e partilha familiares.

E significará solidão, ou mais solidão ainda, para os mais velhos – justamente aqueles para quem, a par com as crianças, e tantas vezes por causa das crianças, essa quadra tem maior significado.

Pedem-nos que o façamos (e devemos fazê-lo) em nome desse bem maior que é a sua protecção, evitando-lhes a doença e o sofrimento físicos, mas não os da alma, que esses agudizam-se, nos dias que vão passando, incertos e lentos, atrás dos vidros de uma janela.

Exigem-nos que nos abstenhamos de uma outra tradição com grande significado, sobretudo, para os mais velhos (novamente), que é a da visita aos cemitérios para, ainda que seja apenas uma vez por ano, prestar homenagem aos nossos mortos. E, ao mesmo tempo que no-lo exigem, pedem-nos, também, que honremos a morte, declarando o luto nacional pelas vítimas da covid-19.

Impedem-nos que circulemos, entre concelhos, num dia “normal” de trabalho e de estudo, num país que se caracteriza, exactamente, pela enorme concentração populacional em áreas metropolitanas, que são compostas, justamente, por vários concelhos, entre os quais se estabelecem, diariamente, os típicos movimentos pendulares casa-trabalho.

Impõe-nos que não sejamos mais de cinco a celebrar um aniversário, mas que sejamos 50 num casamento ou num baptizado. Poderá haver o argumento de que a probabilidade de sermos convidados para um casamento ou baptizado é menor do que a de sermos convidados para diferentes aniversários, mas esse argumento será sempre uma falácia e uma presunção.

E se podemos ser 50 nestas celebrações, poderemos, pelos vistos, ser bastantes mais – não se sabe exactamente quantos – em eventos corporativos, em que se incluem convívios empresariais e organizacionais...

Mencionaram a possibilidade de tornar obrigatória a instalação de uma aplicação, ao que parece de reduzida eficácia, no mesmo exacto país em que, há poucos meses, tanto se falou na desigualdade de acesso às tecnologias, quando as escolas e universidades ficaram fechadas e muitos alunos estiveram, de facto, privados de assistir às aulas online, por não terem computador ou internet.

Prepararam com todo o cuidado uma estratégia para evitar a contaminação nas prisões, mas faltou igual diligência na preparação de uma estratégia para os lares (como mostram os números tenebrosos, que desencadearam uma resposta apressada, cuja eficácia e aplicabilidade continua por provar).

Os profissionais de saúde queixam-se de exaustão e de esgotamento das respostas, ao mesmo tempo que as autoridades afirmam não haver pressão excessiva sobre o SNS – tudo isto enquanto permanecem adiadas consultas, cirurgias e exames, que seriam essenciais para evitar outras doenças e a mortalidade a elas associada.

Entretanto, autoriza-se a realização de uma prova automobilística com grande assistência, em nome do turismo – sector que é, sem dúvida, essencial para a economia portuguesa, mas que está em situação de colapso pelo mundo inteiro, que o diga a aviação e que o diga a dívida que, ameaçam-nos, todos poderemos ter de pagar, da companhia “de bandeira” que é a TAP.

Em simultâneo, anunciam-nos novidades (afinal, não assim tão novas) para a ferrovia e para o encurtamento das viagens que, para já, não sabemos quando voltaremos a fazer.

Esperamos escapar ao SARS-CoV-2, mas não estou segura de que consigamos escapar à demência.

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