Chispes e roncos humanos

Mas voltando aos pés, talvez seja a parte que considero mais repugnante no corpo humano — os chispes de uma pessoa adulta.

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Durante uns tempos, e ainda na juventude, tentei o ofício de sapateiro. Fui aprendiz de bate-sola, mas a minha repugnância por pés não me permitiu sobreviver mais do que um par de meses na cave transformada em oficina. Isso e um acidente, da minha responsabilidade, com uma máquina de serrar que me ia custando o dedo mínimo da mão, à época a mais útil, a direita, pois claro.

Mas voltando aos pés, talvez seja a parte que considero mais repugnante no corpo humano — os chispes de uma pessoa adulta. Acho sinceramente que devia ser ilegal as pessoas andarem por aí com sandálias ou chinelas, exibindo os seus dedões com unhas encardidas, e mesmo quando bem cuidados continuam a ter um aspecto verdadeiramente repulsivo. São feios, pronto. Infelizmente, a natureza não conseguiu acertar em tudo no que toca à beleza.

Apercebi-me também de que, com o avançar da idade, a nossa respiração vai fazendo cada vez mais ruído, como que sinalizando a sua existência e criando uma espécie de lembrete diário. Isto também não é bonito. “Ó amigo, as tuas canalizações estão a ficar gastas.” Há uns anos comecei a ressonar, disse-me a minha mulher. Comparava-me ao som das chaminés das fábricas, aquele zunido constante, estão a ver? Também me disse que pareço um porco, mas não tantas vezes. Só quando estava chateada comigo por outros motivos.

Não pensem que a minha patroa se ria quando me comparava a um animal ou a algo inumano, não fazia analogias pela graça, mas por desgraça. As comparações da minha mulher, as suas críticas sobre o meu modo de respirar, foram sempre movimentos de ataque, setas directas ao meu coração. Não entendo porque é que me detestava.

Ao longo do nosso casamento transformámo-nos numa espécie de irmãos embirrentos. Companheiros sim, mas assexuados e constantemente às turras. Entristece-me bastante pensar sobre algumas épocas do nosso casamento. Fomos felizes, não tenho dúvidas. E ainda gosto muito dela, da minha mulher. Tinha um temperamento difícil, sempre teve. A velhice não lhe trouxe a paz prometida. A minha mulher mirrou um pouco com a idade e não deixou de ser uma linda rapariga. Não a trocava por nada nem ninguém. Também ressonava e tinha uns pés feiíssimos. Disse-lhe uma vez e arrependi-me. Há coisas que não se repetem, nem mesmo a uma companheira morta. 

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