Nesta casa, os restos das colheitas podem ajudar a tratar doenças

Focado em fazer a ponte entre a investigação científica e produtores e empresários, o Centro de Investigação e de Tecnologias Agro-ambientais e Biológicas, em Vila Real, tem apostado na procura de novas aplicações para subprodutos frequentemente descartados, possibilitando novas oportunidades de negócio.

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Chegados ao terceiro piso do edifício de laboratórios da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), em Vila Real, o cenário com que nos deparamos dificilmente se demarca da ideia genérica de investigação científica no imaginário colectivo. Sobre as bancadas, preenchidas pelos tradicionais tubos de ensaio, microscópios e reagentes de diferentes cores, trabalham duas alunas, com as músicas que o rádio debita a preencher o ambiente. Ainda assim, o elemento que se destaca neste quadro descritivo é a imponente Serra do Alvão, que se ergue tal qual uma pintura, do outro lado das grandes janelas. Estamos na casa do Centro de Investigação e de Tecnologia Agro-ambientais e Biológicas (CITAB), fundado em 2007.

Ana Barros, docente e investigadora da UTAD, assumiu a direcção do centro em 2017, conferindo-lhe uma “dinâmica diferente”. “Deixámos de trabalhar em grupos e passámos a seguir linhas temáticas”, explica. A mudança tinha (e tem) como objectivo “diferenciar” o centro “a nível nacional e projectando-o internacionalmente” – algo que vai muito para além da produtividade científica. Na caminhada para lá chegar, a directora faz-se acompanhar de uma equipa “multidisciplinar”, composta por físicos, químicos, biólogos, veterinários e engenheiros agrónomos, zootécnicos, electrotécnicos e civis, o que possibilita uma “conjugação de sinergias” resultante dos “conhecimentos existentes”.

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Ana Barros, docente e investigadora da UTAD, dirige o CITAB desde 2017, assumindo o fito de “diferenciar” o centro “a nível nacional, projectando-o internacionalmente”.

A abrangência de áreas de estudo é reveladora da “primazia” que o CITAB dá aos recursos humanos, embora não constitua exemplo único. Com 324 membros afectos, dos quais 101 são membros integrados e 73 bolseiros, o centro implementou uma política que visa atribuir, de igual forma, financiamento aos membros com estatuto de colaborador que cumpram com as normas de indexação de artigos científicos nas bases de dados Scopus ou JCR. Paralelamente, é também atribuído a todos os bolseiros o estatuto de colaborador do CITAB, para que “todos se sintam integrados”. Ana Barros não hesita em estabelecer uma ligação entre “a procura bastante grande” que o CITAB angaria “sempre que são abertos lugares” e o “espírito de equipa e entreajuda” que se vive dentro dos laboratórios. “Estamos sempre a potencializar os jovens para que consigam progredir, tentamos dar-lhes condições para que isso aconteça”, reconhece.

Divergindo da abordagem de muitos centros de investigação, o CITAB tem como premissa orientadora dos projectos científicos ali desenvolvidos o contributo que estes podem dar aos stakeholders, isto é, empresas e associações de produtores, sobretudo das proximidades, que se deparam com problemas reais e actuais nas suas produções. “Considere-se um campo colonal produzido a partir de variedades de azeitona, por exemplo, a cobrançosa, muito cultivada aqui na região”, sugere a investigadora. “Verifica-se, durante a produção de clones da mesma cultura, que os rendimentos obtidos são diferentes. Isto não faz sentido, porque geneticamente são semelhantes. Como é que isto se explica?” É aqui que, fazendo uso de um abrangente campo de conhecimentos, a investigação científica entra em acção. “Vamos estudar a componente química e tentar perceber o que os distingue.”

A ponte com a sociedade civil solidifica-se também através actividades como workshops, com a participação de produtores, que têm como objectivo manter os canais de comunicação abertos para a sociedade civil e desmentir a ideia de que o progresso na ciência se cinge às paredes do laboratório, aos artigos científicos e às patentes. Um esforço que, segundo Ana Barros, vai ao encontro das preocupações do cidadão actual, cada vez mais exigente e “preocupado” com a “rotulagem dos alimentos” e, consequentemente, o impacto que daí pode advir para a sua saúde – algo que se reveste de especial importância para um centro que ambiciona transformar os campos da alimentação e da saúde, indissociáveis nas suas investigações.

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Eduardo Rosa, investigador e fundador do CITAB, estima um desperdício anual de “200 mil toneladas” de biomassa de brócolos. “Se dermos valor a este material, o produtor só ganha”, explica. Na mira está a recolha de “extractos que possam ser usados para a saúde humana”.

“Fechar o ciclo” pelo aproveitamento de subprodutos

Da sua localização na capital transmontana, o CITAB consegue retirar vantagens e novas oportunidades de investigação resultantes das “matrizes alimentares regionais e autóctones” ali existentes. Num território com condições favoráveis às indústrias vitivinícola, olivícola e até frutícola, a dinâmica de transferência de conhecimentos e mais-valias faz-se, ainda assim, nos dois sentidos. Na mira de Ana Barros e dos restantes investigadores estão abordagens alternativas para subprodutos não aproveitados resultantes das indústrias da região, uma oportunidade para os produtores aumentarem os resultados económicos sem que, para isso, necessitem de investir.

À luz da terminologia actual, seria algo como “criar valor acrescentado” ou “fechar o ciclo”, expressões que, quando Eduardo Rosa começou a investigar o valor nutritivo das couves, ainda na década de 1990, não eram comuns. Ao longo dos anos, o investigador e fundador do CITAB procurou introduzi-los nos diversos trabalhos que desenvolveu. Actualmente, concentra-se em provar a utilidade dos subprodutos da couve-brócolo na prevenção e tratamento de doenças como a obesidade, a diabetes e até o cancro. “Atendendo ao facto de, em Portugal, existirem três mil hectares de brócolos, achei importante perceber como, numa planta que pesa 30% do peso total, [aproveitar] os restantes 70% ficam no solo sem qualquer tipo de valor.”

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A resposta parece estar nas folhas (onde, segundo o investigador, o efeito antioxidante é “quase dez vezes superior ao das eflorescências”) e nos caules, dos quais será possível retirar “extractos que possam ser usados para a saúde humana”, quer através da medicina quer da cosmética. Actualmente, Eduardo Rosa estima que “200 mil toneladas” desta biomassa estejam a ser desperdiçados só em Portugal, daí que dar-lhe valor seja imperativo. “Não estamos a criar nada de inovador”, sublinha. “Se dermos valor a este material, o produtor só ganha. Pode ser uma indústria ou uma actividade que lhe acrescente valor, nem que seja só uns cêntimos.”

Para o engaço da uva, Ana Barros e a sua equipa anteciparam aplicabilidades análogas. Considerado um dos subprodutos menos valorizados da indústria vitivinícola – é visto como “um problema” para os produtores, já que é utilizado “apenas na alimentação animal” e depois “depositado em aterros” – começou a ser estudado pelo CITAB em 2014, quando, a nível mundial, lhe eram dedicados apenas “cinquenta-e-poucos artigos científicos”. Partindo de “quatro castas tintas e três castas brancas da região demarcada do Douro, a investigação focou-se em encontrar características funcionais do subproduto”, ou seja, “verificar se o engaço tinha ou não compostos que pudessem ser benéficos para a saúde”.

Do ponto de vista académico, “o estudo das castas permitiu, de forma imediata, uma série de publicações, apenas com a caracterização química” das mesmas. A etapa seguinte passou pelo desenvolvimento de “estudos de actividade bacteriana”, através dos quais foi possível atestar que “o engaço de algumas castas é capaz de diminuir o crescimento bacteriano de forma mais eficaz do que os próprios antibióticos comerciais”. Trata-se uma descoberta que ganha contornos especialmente relevantes face à advertência da Organização Mundial de Saúde de que a resistência aos antibióticos será uma das principais causas de morte em 2050. Segundo Ana Barros, as substâncias encontradas “podem ser isoladas e potencializadas, por exemplo, com recurso à nano-encapsulação”. Para já, os resultados estão a ser aplicados na indústria da cosmética, através de uma parceria com a Gran Cruz, que comercializará, nas suas unidades de enoturismo, um kit composto por creme anti-rugas, sabonete e gel de banho.

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João Santos, especialista em climatologia, integra um projecto internacional de estudo do impacto das alterações climáticas na vitivinicultura, área de importância fulcral para a economia da região.

Estudar as alterações climáticas na vinha

Actualmente, o CITAB tem 58 projectos de investigação em curso, 14 dos quais são internacionais. Esta distribuição permitiu ao centro fixar o seu orçamento de 2019 em 4 milhões de euros, uma verba composta pelo financiamento atribuído pela Fundação da Ciência e Tecnologia (200 mil euros), pela prestação de serviços a entidades públicas e privadas, e pela participação em projectos internacionais.

João Santos é investigador do CITAB e responsável pelo Clim4vitis, um projecto integrado no programa Horizonte 2020 (financiado em 374 mil euros pela Comissão Europeia) que visa o estudo do impacto das alterações climáticas na vitivinicultura através de “uma parceria, estabelecida a nível europeu, de transferência de conhecimento a partir de algumas instituições líderes” para Portugal. “É uma espécie de germinação que se procura”, resume. A investigação pretende igualmente “avaliar medidas de adaptação, que serão transmitidas aos stakeholders”.

Segundo o especialista em climatologia, a maior ameaça que o sector vitivinícola português enfrenta poderá ser protagonizada pela falta de água, que já se faz sentir, particularmente no Alentejo. “Se alguns países estão preocupados com precipitações extremas, com as ondas de calor ou outros eventos do clima, a meu ver, o problema mais grave que Portugal terá de enfrentar será a seca”, refere. Este cenário terá inevitáveis consequências nos hábitos de consumo dos cidadãos, mas já se repercute nos parâmetros de qualidade usados pelas empresas da indústria vitivinícola, nomeadamente com diminuição da acidez e o aumento de açúcar nas uvas.

Em jeito de balanço, João Santos não se detém em afirmar que a participação portuguesa no projecto internacional se condensa na aprendizagem. “Estamos a aprender mais do que a dar”, resume. “Estamos a aprender muito com os colegas da Universidade de Florença, que têm muita experiência na modelação da vinha, e do Instituto Potsdam de Pesquisas sobre o Impacto Climático. Trazemos para Portugal a informação mais recente que existe ao nível das projecções climáticas.” Como tal, sublinha a importância da existência desta rede de conhecimento, assim como possíveis fusões, e que, neste caso específico, entrariam em território nacional através do CITAB, permitindo uma “nivelação” do conhecimento científico existente em Portugal com o que existe, “de topo”, a nível internacional.

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