Lixo, debate público, cidadania e ideias feitas

É evidente que a escola pública não é neutra, nem o pode ser: está subordinada ao quadro de valores que subjazem à Constituição, repositório último de como os portugueses desejaram organizar-se e viver em sociedade.

Participar no espaço público é direito e dever de todo o cidadão. Com as tecnologias da informação e comunicação a chegarem cada vez a mais pessoas, nunca a informação foi tão acessível e, naturalmente, ao mesmo tempo, mais manipulável. Daí que a educação para a cidadania seja essencial e devia existir em todos os doze anos de escolaridade obrigatória.

O modelo e os conteúdos podem e devem ser discutidos. É evidente, ainda, que a escola pública não é neutra, nem o pode ser: está subordinada ao quadro de valores que subjazem à Constituição, repositório último de como os Portugueses desejaram organizar-se e viver em sociedade. Se isto é indubitável nas escolas do Estado, o espaço de conformação educativa das do ensino privado, cooperativo e concordatário é maior, mas também essas estão sujeitas aos ditames da Lei Fundamental. Que nas questões de cidadania a discussão em torno de sexo, género, orientação sexual e discriminação encontra respaldo na “norma das normas” é um dado assente. Se uma disciplina de cidadania se deve limitar a isto, é óbvio que não. Mas também tem de passar por lá, pois não há cidadãos sem o domínio de temas que estão na base do princípio da igualdade. E isto não serve para transformar ninguém em heterossexual, homossexual, lésbica, assexual, transexual, intersexual e todos os demais matizes que a sexualidade humana comporta. Trata-se, pura e simplesmente, da verificação da realidade, igual à que nos traça a evolução das concepções simplesmente liberais e abstencionistas dos direitos fundamentais para a ideia pós-II Grande Guerra de direitos económicos, sociais e culturais, de terceira e quarta gerações e de um Estado prestacionista. E isto não é de direita ou de esquerda. É do domínio do factual.

Já cansa a lengalenga de que existe um bando de malfeitores que querem transformar os rapazinhos em meninas e vice-versa, acabando com a continuidade da espécie. Se há grupos radicais da dita “ideologia de género”? Claro que sim, como há extremados defensores de machismos e feminismos primários, negacionistas e defensores de totalitarismos de extrema direita ou esquerda. Mas essa não é, felizmente, a mediania da sociedade portuguesa. Donde, quem defende, p. ex., a manutenção obrigatória de uma disciplina de cidadania e desenvolvimento não é um perigoso esquerdista e quem é contra não é um fascista inveterado. Mal vai o país em que não se aceitam os tons de cinza e em que se colam rótulos às pessoas com base nas suas ideias, como se conhecêssemos bem cada uma delas, em todas as suas dimensões.

Estou à vontade neste ponto, pois já me chamaram pedófilo por sublinhar, modestamente, a frontal inconstitucionalidade da castração química (ou física, como agora parece ser, de modo pelo menos mais frontal, a intenção de alguns). Já me apodaram de fascista por defender uma posição que é mais tradicional na direita ou de esquerdista radical por expressar um ponto de vista próximo de uma habitual bandeira desta última área política. Sou dos que propende para a importância das ideologias e que entende que ainda faz sentido, ao menos nas grandes linhas, o que se designa por direita ou esquerda, pois essas são duas formas distintas de mundivisões e de o ser humano se adaptar à mudança. Mas entristece-me a pobreza do debate em que parece que, não sendo embora filiado em partido algum, como é o meu caso, defendermos uma posição concordante com um dado quadrante. A democracia portuguesa ainda tem muito que andar. Pensar pela sua cabeça é o desafio radical que a cidadania nos exige. Se assim não suceder, limitamo-nos a ser escravos de partidos e de interesses, “yes men” e “yes women”, que não se esforçarão por fazer alguma diferença, ainda que na específica e muito limitada área em que actuem. E não, não me estou a queixar, pois “quem anda à chuva molha-se” e porque não concebo a minha vida de cidadão sem a liberdade que o PÚBLICO me concede e que muito prazer me dá.

Termino deixando-vos o desafio de procurarem o recente debate na SIC Notícias entre Sérgio Sousa Pinto e Daniel Oliveira, a propósito da disciplina acima referida. Independentemente do conteúdo, o primeiro demonstrou que não há cidadania sem o mínimo de educação e vice-versa e que, provavelmente, devia voltar aos bancos da escola para perceber a diferença entre discutir argumentos e insultar o interlocutor. É uma tendência, em regra, de quem nada tem para dizer ou que se arrependeu do que fez, mas, em democracia, atacam-se ideias, se for caso disso, mas não as pessoas. Por muito que me incomodem e até causem náuseas determinadas propostas, a cidadania exige-me que desconstrua as concepções de que discorde sem insultar o mensageiro. E isto não é um arremedo de uma pseudo-superioridade moral, como alguns estarão já a vociferar.  É apenas o que se deve procurar fazer. Se alguma vez nisso falhei? Naturalmente, somo ser imperfeito que sou e somos todos: o que não me impele a procurar ser um melhor cidadão a cada dia.

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