Vacina para todos

O acesso universal, justo e equitativo a uma futura vacina segura e eficaz que venha a ser descoberta constitui um tema central, verdadeiro barómetro que nos permitirá saber se estamos no bom caminho.

No meio da tempestade provocada pela pandemia de covid-19, as respostas a algumas questões éticas definirão que mundo queremos para o futuro. Todos esperamos que desta crise possa emergir um “novo normal” que reflita as lições aprendidas neste período. Ambicionamos, por exemplo, que o sabermo-nos totalmente interdependentes reforce uma ética do cuidado mútuo. Esperamos também que estes tempos difíceis nos tornem mais solidários e capazes de promover uma verdadeira justiça que nos conduza a uma maior sustentabilidade social e ambiental. Mas isso depende, como sempre, das nossas opções, aqui e agora.

O acesso universal, justo e equitativo a uma futura vacina segura e eficaz que venha a ser descoberta constitui um tema central, verdadeiro barómetro que nos permitirá saber se estamos no bom caminho. Com efeito, nos últimos meses tem-se verificado uma corrida entre vários países, procurando assegurar o número de vacinas necessárias para os seus cidadãos, numa competição desenfreada de cada um por si. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, referiu-se mesmo a um novo “vacino-nacionalismo”, marcado por egoísmos de alguns contra o interesse de todos. Esse caminho conduzirá a que alguns países, mais ricos e mais poderosos, tenham prioridade no acesso a este bem essencial e absorvam, em primeiro lugar, todo o contingente de vacinas disponível. A acontecer, isso conduziria a mais um sinal da desigualdade global, um fator de deslaçamento social e um novo clamor dos mais pobres e vulneráveis contra a injustiça no mundo.

Podemos e devemos fazer diferente.

Dando resposta a este desafio, um grupo de 118 personalidades portuguesas decidiu apoiar a iniciativa do Prémio Nobel da Paz, Mohammad Yunus (criador do microcrédito) e de dezenas de outros Nobel e líderes mundiais, lançando a campanha “Vacina para todos” (www.vacinaparatodos.pt). Os subscritores propõem que a futura vacina contra a covid-19 seja de acesso universal, ao mesmo tempo, para todas as pessoas, independentemente da nacionalidade ou capacidade económica. O único critério eticamente aceitável para estabelecer prioridades neste acesso à vacina deve ser a maior vulnerabilidade da pessoa ao vírus e não qualquer outro. Isso poderá ser possível, entre outras alternativas, se esta vacina puder ser produzida em vários países do mundo, com o devido controle de qualidade, livre de direitos. Como se expressa na declaração ontem apresentada, essa possibilidade implica o justo ressarcimento dos investimentos realizados pela indústria farmacêutica em todo o processo de desenvolvimento da vacina. Por outro lado, é fundamental a liderança inequívoca das Nações Unidas, através da Organização Mundial da Saúde, num processo de diálogo e cooperação entre as diferentes partes interessadas.

Figuras como o Papa Francisco têm-nos lembrado que “demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento”. Esta consciência pode ajudar não só a ultrapassar estes tempos sombrios, mas, de uma forma resiliente, a podermos fazer desta adversidade uma oportunidade para construir um mundo melhor. Na mesma linha, a filosofia e ética social Ubuntu, que inspira a Academia de Lideres Ubuntu, que lançou esta iniciativa em Portugal, também nos fala da nossa humanidade comum, do “ser pessoa, através das outras pessoas”, na certeza que “relaciono-me, logo existo”. Como dizia Desmond Tutu, um outro Nobel da Paz, também subscritor desta declaração de Yunus, “a tua dor é a minha dor, a tua alegria é minha alegria”. É urgente percebermos isso e agirmos em conformidade. Não podemos perder a oportunidade de construir o futuro que ambicionamos.

Instituto Padre António Vieira; coordenador da Campanha “Vacina para todos”

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