Não há que ter medo da Educação para a Cidadania

Quem está contra as aulas de Educação para a Cidadania parece estar a ser contra as medidas educativas na escola pública que podem impedir a violência, discriminação, bullying daqueles seres humanos mais frágeis e que estão a passar por alguma situação difícil de identidade ou de género.

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Paulo Pimenta

A presente investida contra a obrigatoriedade das aulas de Educação para a Cidadania constitui, no fundo, uma continuação da investida contra a Lei n.º 38/2018, sobre o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à protecção das características sexuais de cada pessoa, nomeadamente o seu artigo 12. Vale a pena relembrar que em 2019 também havia um movimento, promovido pela direita conservadora, contra a constitucionalidade desta lei. Agora, o que a direita conservadora está a dizer é o seguinte: se uma pessoa não gostar do currículo X ou Y, então pode fazer objecção de consciência a X ou Y.  Como tal, a direita conservadora não gosta da Lei n.º 38/2018 e quer eliminar qualquer currículo e disciplina que tenha alguma base na mesma, como é o caso da Educação para a Cidadania.

Mas este raciocínio da direita conservadora é perigoso por dois motivos. Em primeiro lugar, quem, por exemplo, não gostar da teoria da evolução (ensinada em Biologia), ou da ética utilitarista (ensinada em Filosofia), ou de outro tópico curricular, poderá simplesmente apelar pela mesma lógica à objecção de consciência desses tópicos ou disciplinas, o que é absurdo dado que a educação fica à mercê de caprichos individuais. Em segundo lugar, não há boas razões para não gostar da Lei n.º 38/2018. Em particular, afirmar que o artigo 12.º da Lei n.º 38/2018 é inconstitucional é completamente forçado e falacioso. Não se vê qualquer “ideologia do género” a ser imposta nessa lei de forma a abolir a fronteira entre o masculino e o feminino. Nada no artigo 12 indicia isso. Muito pelo contrário. Vejamos, então, o que se pode ler nesse artigo 12: “medidas de prevenção e de combate contra a discriminação”; “mecanismos de detecção e intervenção sobre situações de risco que coloquem em perigo o saudável desenvolvimento”; “condições para uma protecção adequada da identidade (…) contra todas as formas de exclusão social e violência dentro do contexto escolar”.

Ora, quem é contra este artigo 12 e, por conseguinte, contra a obrigatoriedade das aulas de Educação para a Cidadania onde se ensinam estes tópicos, parece estar a comprometido com a ideia de que não devem existir medidas formativas nas escolas públicas de prevenção e combate contra a discriminação sobre a identidade, está a defender que não deve haver educação para se intervir em situações de risco (por exemplo, quando um jovem está a ser vítima de bullying devido à sua identidade), está a defender que não há qualquer problema com a exclusão social e violência dentro do contexto escolar por causa das questões de identidade e de género. Em suma, quem está contra o artigo 12 e as aulas de Educação para a Cidadania parece estar a ser contra as medidas educativas na escola pública que podem impedir a violência, discriminação, bullying daqueles seres humanos mais frágeis e que estão a passar por alguma situação difícil de identidade ou de género.

Colocar o ensino destas questões como opcional pode condicionar a cidadania, dado que não é garantido que todas as crianças e adolescentes aprendam em casa a respeitar as pessoas LGBTI. Pelo contrário, os estudos mais recentes, como o da ILGA, indicam que ainda existe muita violência homofóbica e transfóbica em ambiente escolar. De acordo com esse estudo, “dois terços (66,7%) afirmaram ter sido alvo de agressões verbais por causa de características pessoais, a maioria por causa da sua expressão de género (66,6%), da sua orientação sexual (55,0%), e um quarto (25,7%) por causa da sua identidade de género”. Se as crianças e adolescentes não aprendem em casa a respeitar a orientação sexual e identidade de género dos seus colegas, então uma das formas de colmatar essa violência homofóbica e transfóbica poderá passar por aulas obrigatórias de Educação para a Cidadania, onde estas questão sejam abordadas.

Portanto, se queremos evitar enquanto sociedade situações de violência, discriminação e bullying, promovendo o bem comum, não há qualquer razão para se ter medo das aulas de Educação para a Cidadania.

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