Morreu o “camarada Duch”, o principal carrasco do regime de Pol Pot no Camboja

Antigo chefe de uma prisão de segurança onde foram mortos e torturados mais de 15 mil de opositores ao regime, tinha 77 anos. Foi o primeiro homem condenado pelos crimes dos Khmer Vermelhos.

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Kaing Guek Eav numa sessão do julgamento, em 2008 EPA/MAK REMISSA

Kaing Guek Eav, conhecido por “camarada Duch”, o principal carrasco do regime de Polt Pot no Camboja, morreu esta quarta-feira, aos 77 anos, no Hospital da Amizade Khmer-Soviética de Phnom Penh, onde estava internado desde segunda-feira.

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Kaing Guek Eav, conhecido por “camarada Duch”, o principal carrasco do regime de Polt Pot no Camboja, morreu esta quarta-feira, aos 77 anos, no Hospital da Amizade Khmer-Soviética de Phnom Penh, onde estava internado desde segunda-feira.

Em 2010, o antigo chefe da prisão Tuol Sleng, conhecida pelo nome de código de S-21, tornou-se no primeiro homem condenado pelos crimes dos Khmer Vermelhos por um tribunal internacional. Foi considerado responsável pelo assassínio de pelo menos 15 mil cambojanos naquela prisão e condenado a prisão perpétua.

O “camarada Duch” e a prisão de Tuol Sleng tornaram-se um símbolo da violência e brutalidade dos Khmer Vermelhos, um grupo maoista responsável pela morte de pelo menos 1,7 milhões de pessoas. Entre 1975 a 1979, um quarto da população do Camboja foi assassinada pelo grupo e um tribunal especial da ONU reconheceu o genocídio levado a cabo pelo regime de Polt Pot.

Enquanto chefe da prisão de Tuol Sleng, Duch coordenou e documentou a tortura e execução de milhares de homens, mulheres e crianças. Os prisioneiros eram obrigados a fazer confissões detalhadas sobre a sua falta de lealdade ao regime, muitas delas falsas, em desespero para se salvarem, denunciando amigos e familiares.

Após o tempo que passavam na S-21, muitos prisioneiros eram enviados para os campos em Choeung Ek, onde eram executados, muitas vezes espancados até à morte ou obrigados a cavar as próprias sepulturas.

Os guardas da prisão de Tuol Sleng, sobretudo adolescentes oriundos de meios pobres, eram instruídos a espancar os cambojanos considerados “traidores” ou “contra-revolucionários”. As suas vítimas eram, por isso, sobretudo membros ou simpatizantes do governo de Lon Nol, deposto pelos Khmer Vermelhos em 1975. O regime Khmer chegaria ao fim quatro anos depois, com intervenção das tropas vietnamitas.

O ex-professor obediente

Antes de os Khmer Vermelhos tomarem o poder no Camboja, “Duch” foi professor de matemática. Adoptou o seu nome revolucionário com base num livro infantil sobre uma criança bastante obediente chamada Duch – a sua obediência foi das característica que mais agradou ao regime, elevando-o à chefia da prisão de Tuol Sleng.

Com a queda do regime de Pol Pot em Janeiro de 1979, Duch supervisionou a execução dos últimos prisioneiros, mas não destruiu os relatórios sobre os interrogatórios, que vieram a tornar-se provas dos crimes.

Após fugir de Phnom Penh, “Duch” converteu-se ao cristianismo e refugiou-se durante duas décadas em campos de refugiados junto da fronteira do Camboja com a Tailândia. Foi encontrado em 1999 pelo fotógrafo Nic Dunlop, que viria a escrever o livro The Lost Executioner (o carrasco perdido).

Antes de ser detido, “Duch” disse ao fotojornalista irlandês que tinha decidido confessar os crimes cometidos, refutando as alegações de Polt Pot – que morrera em 1998 – de que a S-21 era propaganda política.

Em tribunal, “Duch” mostrou-se arrependido dos seus crimes, e garantiu que apenas estava a cumprir ordens dos seus superiores por temer pela sua vida e a dos seus familiares. No entanto, segundo a descrição do The New York Times, a sua “ousadia, arrogância, autoconfiança e condescendência a corrigir advogados ou testemunhas” durante o julgamento geraram dúvidas quanto à sua contrição, tendo inclusive sido chamado à atenção pelo juiz por se rir de algumas perguntas. Quando pediu para ser ilibado, causou enorme indignação juntos dos familiares das vítimas. 

Durante o julgamento, “Duch” também pôs em causa o seu trabalho à frente de Tuol Sleng, afirmando que não acreditava na maioria das confissões dos prisioneiros torturados: “Nunca acreditei que nas confissões diziam a verdade. No máximo, eram apenas 40% verdadeiras.” Além disso, acrescentou que apenas 20% dos nomes extraídos de confissões após tortura eram verdadeiros opositores dos Khmer Vermelhos.

Contudo, conforme sublinhou no julgamento, “todos os que eram presos e enviados para a S-21 já se presumiam mortos”.

Em Julho de 2010, “Duch” foi condenado a 35 anos de prisão, uma pena agravada para prisão perpétua em 2012. Além de “Duch”, o tribunal especial criado pelas Nações Unidas condenou a prisão perpétua dois líderes dos Khmer Vermelhos, Nuon Chea e Khieu Samphan, em 2014 e 2018. Nuon Chea morreu no ano passado, enquanto outros dirigentes, Ieng Sary e Ieng Thirith, morreram em 2013 e 2015, antes de serem condenados.