Condenação de líderes dos Khmer Vermelho reconhece o genocídio no Camboja

Quase 40 anos depois do fim do regime de Pol Pot, o tribunal especial criado com a ONU condena os dois principais responsáveis ainda vivos – com grande probabilidade, os últimos a serem julgados.

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Nuou Chea era o "Irmão Número Dois"; o "Número Um" era Pol Pol Reuters
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Samphan a falar com o seu advogado durante a audiência Reuters

Lah Sath tem 72 anos e pertence à minoria muçulmana cham do Camboja, que os Khmer Vermelho tentaram aniquilar ou converter à sua utopia ateia de uma sociedade agrária pura, sem moeda nem cidades. Esta sexta-feira foi ao tribunal especial criado para julgar os crimes de guerra do regime. Levou a mulher e quatro netas. Já tinha ouvido falar; desta vez, quis ver com os seus olhos. Os Khmer Vermelho cometeram “genocídio”, disse pela primeira vez o tribunal – e Lah Sath, a quem mataram o irmão por não cuidar bem de uma vaca, estava lá para ouvir.

“A câmara conclui que crimes de genocídio foram cometidos” contra “o povo vietnamita” e contra os “muçulmanos cham”, afirmou Nil Noon, juiz presidente do tribunal que integra magistrados cambojanos e internacionais, em Phnom Penh.

Já condenados por crimes contra a humanidade (transferências forçadas e desaparecimentos em massa), em 2005, Nuon Chea, de 92 anos, conhecido como “Irmão Número Dois” e considerado o principal ideólogo do regime, descrito pelo tribunal como “a mão direita de Pol Pot”, e Khieu Samphan, de 87 anos, que foi chefe de Estado entre 1976 e 1979, são agora condenados por genocídio – o primeiro contra os vietnamitas do Camboja e os cham; o segundo contra os vietnamitas.

Na extensa lista de crimes lida por Noon (Chea pediu para sair nessa altura por se estar a sentir mal), inclui-se assassínio, extermínio, esclavagismo, deportação, encarceramento, tortura, perseguição religiosa, racial e política, desaparecimentos e violações em massa através da política de casamentos forçados…

Ambos integraram um “programa criminoso conjunto” realizado para estabelecer “uma sociedade ateia e homogénea”, sem diferenças “étnicas, nacionais, religiosas, raciais, de classe ou culturais”. Os primeiros condenados por genocídio no Camboja serão muito provavelmente os últimos acusados pelos crimes do regime de terror iniciado a 17 de Abril de 1975 – e que em três anos, oito meses e 20 dias matou à fome, por trabalho forçado ou através de execuções 1,7 milhões de pessoas, um quarto da população.

Os alvos do extermínio, para além das minorias, foram os “inimigos do povo” entre os khmer. Estes eram a maioria da população e, naturalmente, das vítimas. Por isso demorou tanto até o tribunal se referir como genocídio aos crimes ordenados por Pol Pot (que morreu em 1998) – para ajudar a provar o genocídio dos vietnamitas, o tribunal ouviu um discurso de Pol Pot em que este assegurava, em 1978, já não haver “nem uma só semente” vietnamita no Camboja; vítimas cham descreveram como os membros da sua comunidade foram objecto de execuções em massa, proibidos de usar nomes muçulmanos ou praticar a sua religião e obrigados a comer porco (os budistas também eram frequentemente humilhados).

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Os budistas eram alvo de humilhações e proibidos de usar as suas vestes laranja Reuters

Os membros do Governo

Nuon Chea e Khieu Samphan são dois entre apenas três responsáveis julgados pelo tribunal criado em 2006, depois de delicadas negociações entre as Nações Unidas e o Governo. Hun Sen, primeiro-ministro desde 1985, reeleito em Julho sem oposição, é contra o julgamento da história e diz que mais processos poderiam conduzir a uma guerra civil. É acusado de interferir no tribunal, conseguindo o arquivamento do outro processo, contra quatro quadros de nível intermédio do regime radical maoísta.

Levar a tribunal todos os que integraram nalgum momento esta estrutura de poder significaria, por exemplo, julgar Hun Sen e muitas figuras do seu Governo – o primeiro-ministro desertou quando começaram as grandes purgas internas e acabou por se juntar às forças do Vietname que derrubaram os Khmer.

Antes destes dois responsáveis, apenas Kaing Guek Eav (conhecido como “Duch”), comandante da infame prisão S-21 de Phnom Penh – onde 15 mil cambojanos foram torturados antes de ser executados – tinha sido condenado, a prisão perpétua, pelo tribunal especial.

“Pouco e tarde” ou “um dia absolutamente histórico”, há opiniões bem diferentes sobre o veredicto agora conhecido. “Foi um regime tão maléfico”, disse o procurador Nicholas Koumjian. “O veredicto é oportuno e necessário. O facto de estes crimes terem acontecido há 40 anos não diminui de nenhum modo o impacto do veredicto para os que foram afectados, pessoas cujos pais foram torturados e mortos.”

Nuremberga ou justiça adiada

David Scheffer, ex-enviado especial da ONU para os julgamentos, considera o veredicto “muito significativo”: “É comparável ao julgamento de Nuremberga depois da Segunda Guerra Mundial. Isso vale o esforço e o dinheiro”, afirma, citado pelo diário britânico The Guardian. Entre as principais críticas ao tribunal está a lentidão com que trabalhou e os gastos de mais de 260 milhões de euros.

Para a advogada e sobrevivente Theary Seng, que falou aos jornalistas à porta do tribunal, “justiça adiada é justiça negada”. O veredicto “é a acumulação de anos e anos de espera”, diz. Seng também tem dificuldades em aceitar que “só três pessoas tenham sido julgadas, quando houve milhares de assassinos”. “

A Amnistia Internacional descreve o veredicto como “justiça adiada e amarga”. Já a Human Rights Watch nota que o mundo devia exigir a “Hu Sen que explique por que é que pediu aos juízes cambojanos que ponham fim aos processos”, lê-se num comunicado. “Se os Khmer Vermelho deixaram de existir como entidade política e militar, de que é que o Governo tem medo?”

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Muitos muçulmanos cham quiseram estar presentes na leitura do veredicto Reuters

Lah Sath, como tantos, foi expulso da cidade e obrigado a trabalhos forçados no campo, contou à Al-Jazira. A ele, um dos muitos cham que encheram a sala de audiências na capital, basta falar sobre os Khmer para reviver “memórias horríveis”. Desta vez, depois das memórias veio o veredicto que torna oficial o sofrimento de tantos e lhe chama genocídios.

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