Acesso à justiça em tempos de pandemia – uma interpelação sem precedentes

As medidas de suspensão dos prazos e de limitação da realização de diligências e o expectável aumento da procura do sistema de justiça, provocarão, inevitavelmente, uma grande pressão sobre os tribunais. Em articulação com os Conselhos Superiores acompanharemos com proximidade a evolução das entradas de novos processos e adequaremos a resposta interna às necessidades que se venham a verificar.

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Nuno Ferreira Santos

O dia 1 de setembro marca o reinício, em pleno, do funcionamento dos tribunais. O contexto é, porém, profundamente diferente do que vivemos nesse mesmo dia em 2019. A pandemia mudou a nossa sociedade e o modo como interagimos uns com os outros. Algumas dessas mudanças serão, talvez, permanentes e forçam os tribunais a encarar modos diferentes de funcionamento.

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O dia 1 de setembro marca o reinício, em pleno, do funcionamento dos tribunais. O contexto é, porém, profundamente diferente do que vivemos nesse mesmo dia em 2019. A pandemia mudou a nossa sociedade e o modo como interagimos uns com os outros. Algumas dessas mudanças serão, talvez, permanentes e forçam os tribunais a encarar modos diferentes de funcionamento.

O maior desafio social, político e jurídico que a pandemia nos coloca é a nossa capacidade de responder à crise de saúde pública, garantindo, em simultâneo, que as medidas que tomamos para a debelar não dissolvem o nosso compromisso com a salvaguarda dos valores essenciais: direitos fundamentais, democracia e estado de direito.

Mesmo na situação extrema do estado de exceção constitucional, o direito de acesso aos tribunais não conheceu qualquer suspensão, embora a transversalidade das medidas adotadas para combater a pandemia tenha limitado as possibilidades reais dos cidadãos se relacionarem com os tribunais e de praticarem atos processuais, presenciais ou não. As estratégias de combate à pandemia afetaram, decerto, o nível de resposta do sistema de justiça, mas nunca afetaram as exigências, constitucionais e legais, de manutenção em funcionamento dos tribunais e de acesso à tutela jurisdicional.

As medidas de suspensão dos prazos e de limitação da realização de diligências e o expectável aumento da procura do sistema de justiça, provocarão, inevitavelmente, uma grande pressão sobre os tribunais. Em articulação com os Conselhos Superiores acompanharemos com proximidade a evolução das entradas de novos processos e adequaremos a resposta interna às necessidades que se venham a verificar.

O sistema de justiça está hoje dotado de meios que permitem não só um conhecimento tempestivo das tendências de evolução nas várias circunscrições e jurisdições como concretizam um modelo de articulação entre órgãos de gestão locais e os centrais. O contexto pandémico foi um teste súbito e radical à adequação do modelo de gestão dos tribunais.

O Governo, como responsável pelo sistema, garantirá, na parte que lhe respeita, que os tribunais prossigam, em segurança, a sua atividade, preservando a saúde e o bem-estar tanto daqueles que administram a justiça como daqueles que a procuram. Os espaços dos tribunais foram dotados dos equipamentos e dos meios de proteção recomendados pelas autoridades de saúde para garantir a higienização, a etiqueta respiratória e o distanciamento social e em todas as circunscrições foram sinalizados, na comunidade, outros espaços funcionalmente adequados para o exercício da função jurisdicional.

Não é um desafio leve e não há soluções fáceis. Todos os agentes do sistema de justiça são convocados para contribuir para a construção de soluções, na certeza de que as mudanças tornarão o sistema judiciário mais resiliente e mais eficiente no futuro. O primeiro passo é aceitar a ideia de mudança. O sistema de justiça mudará mais e de modo mais radical na próxima década do que mudou nos últimos cem anos. A questão não é se a mudança virá – mas o conteúdo e a forma que terá.

Os desafios que perfilam no horizonte são sérios e não podem ser enfrentados com êxito por uma só vontade. Só com o apoio e determinação de todos conseguiremos que, mesmo em tempos de pandemia, os tribunais continuem a ser comunidades de trabalho e concorram para que a nossa sociedade se torne mais aberta, mais pacífica e, sobretudo, mais justa. Negar o acesso à justiça, ainda que a pretexto dos constrangimentos sanitários que experimentamos, é negar aos cidadãos a sua dignidade. Trabalhar em conjunto para assegurar o acesso de todos os cidadãos à justiça, e a uma justiça pronta não é um caminho, é o único caminho.

Este é o tempo de definirmos uma estratégia para o sistema de justiça utilizando a linha comum entre as adaptações que o sistema reclama como resultado da pandemia e os esforços exigidos para o modernizar. A expressão acesso à justiça torna-se, neste contexto, redutora. O que está verdadeiramente em causa é uma ação para a justiça. Mas a crise pode e deve ser um tempo de mudança significativa.

Se não nos elevarmos à altura do desafio e se não consensualizarmos soluções construtivas e criativas, arriscamos perder a confiança dos cidadãos na justiça e mesmo alienar a pedra angular do nosso sistema de justiça: o império da lei.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico