Casa Fernando Pessoa reabre ainda mais casa

Novos espaços, uma entrada e um percurso museológico reinventado de raiz são as marcas mais visíveis das obras de remodelação da Casa Fernando Pessoa, que reabre este sábado.

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O novo espaço onde foram marcadas, no chão, as divisões do apartamento de Fernando Pessoa
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Uma das máquinas de escrever do poeta
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A biblioteca particular de Fernando Pessoa
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A heteronímia sugerida num jogo de espelhos
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A cómoda onde Pessoa teria escrito os poemas de "O Guardador de Rebanhos"
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Depois de ano e meio fechada para obras de remodelação, a Casa Fernando Pessoa (CFP) reabre este sábado, oferecendo aos visitantes uma casa mais acolhedora, com uma nova entrada concebida para facilitar o acesso de pessoas com mobilidade reduzida, espaços de circulação alargados e um novo percurso museológico de longa duração, mais amigável e interpelante, e que sobretudo acentua a circunstância de esta ter sido a morada de Fernando Pessoa, cujo apartamento tem agora a respectiva topografia marcada, divisão a divisão, no pavimento do primeiro piso.

Encerrada para obras desde Março de 2019, a CFP, que vinha dando continuidade à sua programação noutros espaços de Lisboa, deve ter sido uma das raras instituições culturais que a covid-19 não obrigou a fechar, embora a pandemia a tenha, sim, impedido de reabrir em Maio, como estava inicialmente previsto. Mas os visitantes podem agora finalmente voltar à Casa, cujo edifício foi substancialmente alterado, e que tem até um novo endereço – Rua Coelho da Rocha, 16-18 –, já que a abertura de uma nova entrada implicou um segundo número de polícia.

“Houve um prolongamento das áreas, foi construído mais chão, porque a casa tinha vários vazios que agora foram preenchidos, e isso permitiu aumentar significativamente a área expositiva”, explica a directora da CFP, Clara Riso. No primeiro andar direito, onde vivia Pessoa, um piso que desaparecera para dar lugar a um enorme pé direito, “foi reposta a laje e conseguiu-se, a partir de vários testemunhos, desenhar a planta do apartamento no chão, mostrando onde ficavam os quartos, a sala, a cozinha”, acrescenta.

Este novo piso, onde o visitante entra no espaço doméstico e íntimo do poeta, e que era também o cenário privilegiado da sua prodigiosa criação literária, é o ponto de chegada de um percurso expositivo descendente, que se inicia no terceiro andar, dedicado aos heterónimos, e que tem o seu centro – em sentido tanto espacial como simbólico – no segundo piso, onde se expõe agora a biblioteca pessoal de Fernando Pessoa, bem como a estante que originalmente a acondicionou.

A biblioteca foi já inteiramente digitalizada, e a diversa marginália que se encontrou nos seus livros, classificados como tesouro nacional, tem sido sistematicamente investigada e editada, constituindo hoje uma fonte importante dos estudos pessoanos. Mas nesta exposição podem agora ver-se as lombadas dos volumes que o poeta manuseou e observar-se com maior detalhe alguns livros colocados em destaque.

A remodelação do edifício, que incluiu também a mudança do auditório para o rés-do-chão, resultou do desenvolvimento cruzado de um projecto de obra civil, desenhado pelo gabinete José Adrião Arquitectos, e de um projecto museográfico assinado pela empresa GNBT e pelos designers Nuno Quá e Cláudio Silva a partir de uma proposta do curador e ensaísta Paulo Pires do Vale, actual comissário do Plano Nacional das Artes.

Embora a exposição que agora abre ao público apresente algumas aquisições recentes, e mostre peças que já estavam na CFP mas que não costumavam ser expostas, o que principalmente a distingue é a sua organização em três pólos temáticos e uma constante preocupação de apelar à participação dos visitantes e despertar a sua curiosidade pela biografia e pela obra literária de Pessoa. “Temos móveis com gavetas para abrir, uma sala de espelhos para as pessoas brincarem com a ideia da sua identidade multiplicada, bancos de escuta onde o visitante pode ouvir poemas, e as próprias legendas das peças foram todas pensadas para contar histórias”, inventaria Clara Riso.

Um poeta em três pisos

A CFP recomenda aos visitantes que iniciem a sua visita no terceiro piso, mergulhando logo no enigma da proliferação heteronímica. É aqui que se encontra o retrato do poeta pintado por Almada Negreiros em 1954, uma das mais célebres peças da iconografia pessoana, bem como uma série de desenhos que Júlio Pomar lhe dedicou, entre várias outras peças e documentos.

Na paragem seguinte, dominada pela biblioteca de Pessoa, há ainda uma área destinada a exposições temporárias, onde neste momento se exibe um filme de Luís Alves de Matos, O Passageiro, justamente centrado nos livros que o poeta foi reunindo ao longo da sua vida. Alguns destes livros e revistas foram comprados recentemente pela CFP, como um exemplar da revista Athena, adquirido em 2019, que ostenta marcas autógrafas de Pessoa, incluindo, sublinha Clara Riso, “algumas alterações nas odes de Ricardo Reis que ali tiveram a sua primeira publicação”.

Entrada ainda mais recente é a de um volume agora em destaque na exposição, Reflexões sobre a Língua Portuguesa (1842), do padre Francisco José Freire, adquirido em Maio passado no leilão do espólio de Luiz Miguel Rosa, sobrinho de Pessoa. Um investigador já confirmou que são mesmo do punho do poeta as notas à margem manuscritas neste livro, objecto de alguma importância simbólica no universo pessoano por ser citado no Livro do Desassossego: “As minhas leituras predilectas são a repetição de livros banais que dormem comigo à minha cabeceira. Há dois que me não deixam nunca — A Retórica do Padre Figueiredo e as Reflexões sobre a Língua Portuguesa, do Padre Freire”.

Se a necessidade de preservar em boas condições a biblioteca particular de Pessoa não permite o manuseamento regular dos livros, recorde-se que a CFP dispõe também de uma importante biblioteca de acesso público, que vem construindo desde a sua fundação, em 1993, e que se especializou não apenas nos estudos pessoanos, mas na poesia em geral, quer portuguesa, quer internacional.

Vista a biblioteca, o visitante desce mais um piso e entra num espaço que, por muitas alterações que tenha sofrido, inclui o lugar onde Fernando Pessoa morou nos seus últimos 15 anos de vida. E que este foi ocupar há precisamente 100 anos, como se confirma pelo contrato de arrendamento, que a CFP conserva e que está datado de 1 de Abril de 1920.

Além de um recém-adquirido desenho a lápis de cor que Almada fez de Pessoa em 1913, o ano em que os futuros camaradas de Orpheu se conheceram, é neste apartamento pessoano reconstituído sem paredes que nos defrontamos com dois objectos que, sendo de natureza muito diversa, irradiam uma aura que talvez não tenha paralelo em nenhuma outra peça da exposição. O primeiro é a celebérrima “cómoda alta” na qual Pessoa, segundo ele próprio assegurou em carta a Adolfo Casais Monteiro, teria escrito, sob o título O Guardador de Rebanhos, “trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase”, saudando, nesse dia a que chamou “triunfal”, a aparição em si próprio do seu mestre Caeiro. O segundo objecto é uma simples folha de papel, no topo da qual o poeta escreveu a lápis, numa caligrafia leve, as palavras “I know not what tomorrow will bring”, seguidas de uma data: 29 de Novembro de 1935. A véspera da sua morte.

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