Portanto, tu queres ser escritor

Desculpe, João Tordo, mas se estava mesmo a falar comigo, informo-o que continuar a ser um leitor-escritor amador para mim está óptimo, pois a sensatez aconselha que as grandes paixões da vida não se profissionalizem.

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LM miguel Manso - publico

Que me perdoe este roubo tão descarado, para o título do texto, o autor João Tordo, mas esta reflexão repetida até à exaustão em cada capítulo da sua obra, Manual de sobrevivência de um escritor, descortina com clareza que afinal se encontram pesos obscuros na, à primeira vista iluminada, vida de um escritor.

Perante tal reflexão cheia de frontalidade, qualquer pretendente a escritor, no mínimo, estremece. Matilde Campilho, após o lançamento do seu segundo livro também reconheceu: “Agora eu sei que tenho uma profissão muito séria.” Afastando-nos das palavras ecoadas por estes autores, o leitor acaba por se questionar: quão severo será o ofício de um escritor?

Ao navegarmos pelas páginas do manual de João Tordo, viajamos também num barco atulhado pelas idiossincrasias que conduziram a vida e obra de ilustres autores como Bukowski, Bolaño ou Kafka, mas também por conflitos e invejas literárias, por exemplo entre Lobo Antunes e Saramago. Convivemos ainda com escritores menores para João Tordo, como Aldous Huxley ou o filósofo Bertrand Russell. Pela borda fora, mergulhamos no mundo da literatura e percebemos, desde logo, que há algo partilhado por todos os escritores. A obsessão esculpida pelos milhares de horas dedicados à leitura e, ulteriormente, ao ofício da escrita. Por isso, mantive-me boquiaberto por segundos quando alguém me confidenciava: “Não tenho tempo para ler, aliás, quero escrever este livro pela minha própria cabeça.” Desenhou-se logo na minha mente, uma imagem cristalina do país onde são publicados cerca de 14 mil livros por ano, mas, em média, apenas um livro é lido por cada português durante 365 dias.

E para João Tordo o que é mandatório para se passar do lado de cá, leitor, para o lado de lá, escritor? Entender que esta arte, financeiramente insustentável, sobrevive através de uma estranha forma de olhar para a vida, apoiada num modo de usar técnico e baseada numa paixão. A páginas tantas é recordado Stephen King: “A vida não é o suporte da arte mas o seu contrário”. Portanto, viva-se e depois, talvez, escreva-se. Há também espaço para as regras simples que resultam em qualquer actividade: múltiplas horas de dedicação, evitar distracções, autocriticar-se sempre e entender o que melhorar , desconstruindo as diferentes etapas. O talento tem sempre de existir, mas sozinho não chega. Na escrita como na vida também contam a sorte e o contexto oportuno. 

Vale a pena ler? Sabemos que ler melhora a nossa saúde. A literatura será sempre o caminho mais curto para transformar solidão em solitude. Para confrontar e recriar as nossas ideias e pensamentos diários, sublinhando-os ou anotando-os. No fluxo imparável entre leituras, acabamos por trabalhar a concentração despidos dos habituais estímulos digitais que nos rodeiam e injectam dopamina. A capacidade crítica que se ganha na leitura serve para entendermos perspectivas diferentes da nossa, combatendo assim o egocentrismo, a intolerância e mantendo-nos alerta para potenciais ideias vis. Não será este o mecanismo que nos permite melhor interpretar o mundo para depois poder escrever e viver mais atentos e conscientes de nós mesmos? Não sou eu que o afirmo, mas Sócrates, o filósofo, que alertava que “uma vida que não é examinada não merece ser vivida”.

E vale a pena escrever? Séneca esclarecia até “fartura de livros, barafunda no espírito”. Escrever serve para, sozinhos e concentrados, organizarmos o conhecimento que conseguimos beber através de cada palavra lida e de toda a experiência vivida. Escrever é produzir e gravar, sob a forma de palavras organizadas para não esquecer e firmar a voz interior. A escrita distancia-nos dos nossos problemas e resolve-os com menos ego, mais ponderação e sob outro ponto de vista. Assim, através da escrita encontramos respostas para abordar o sofrimento e o medo último, o sono eterno, pois, tal como Pessoa dizia, “pensar incomoda como andar à chuva”. E o escritor parece, afinal, ser uma espécie de sofredor. Sofre pela falta de tempo actual para estar com pessoas (reais), sofre na carteira e sofre de ansiedade. Por isso, escreve para acalmar o desassossego que existe dentro de cada um de nós.

Portanto, tu queres ser escritor? Desculpe, João Tordo, mas se estava mesmo a falar comigo, informo-o que continuar a ser um leitor-escritor amador para mim está óptimo, pois a sensatez aconselha que as grandes paixões da vida não se profissionalizem.

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