A sedução da fotografia que nunca tirámos

A arte conceptual articulou os limites da arte formalista com a sua própria crítica, conferindo primado ao processo mental, à ideia.

Estas crónicas partem sempre de uma imagem, artística ou não. Esta crónica parte igualmente de uma imagem, mas de uma imagem que nunca chegou a existir. A propósito do Dia Mundial da Fotografia, recentemente comemorado (19 de Agosto), recordei-me de que, na Primavera de 2015, em Berlim, passava os olhos pelas ofertas de livros expostos, em língua inglesa, nas prateleiras de uma livraria que me agradou. Nesta procura, encontrei um livro que chamou especialmente a minha atenção: Photographs not taken (Daylight, 2012). Trata-se de um conjunto de depoimentos, escrito por fotógrafos, com edição de Will Steacy. Ao longo destes textos, o leitor vai encontrando relatos de momentos que nunca foram convertidos em fotografias, permanecendo, por conseguinte, no domínio da ideia ou da potencialidade. Por outras palavras, não estamos perante a inacção artística, mas, mais precisamente, perante a não acção. Quer dizer, são fotografias que foram activamente pensadas, desejadas, enquadradas, imaginadas, mas que não aconteceram, por diversos motivos que os fotógrafos vão explanando. Contudo, estas não-fotografias encontram um denominador comum: os artistas terem-se sentido atraídos por um momento singular e intuitivo da realidade, que dificilmente alguma imagem, na verdade, e segundo eles, poderia materializar.

Quando se refere à arte moderna, Theodor Adorno, na sua Teoria Estética (Ästhetische Theorie, 1970), entende a negação da arte moderna como precisamente o que está na origem da sua própria força. Na verdade, ao longo dos anos 60 e no decorrer da década seguinte, e no contexto geral da neovanguarda internacional, além do desenvolvimento da que podemos designar, curiosamente, por arte “enquanto acção” – num certo espírito e performatividade de revisitação do dadaísmo –, tornar-se-ia visível o incremento da arte como ideia, ou seja, um conceptualismo em sentido mais lato, relacionado, mas não exactamente coincidente, com o movimento da arte conceptual. Este movimento, profundamente crítico, reflectiu especificamente sobre a ideia e a natureza da arte, congregando em si a arte, a teoria e a crítica, sob diversas formas e manifestações, resultantes do culminar da estética processual. A arte conceptual articulou os limites da arte formalista com a sua própria crítica, conferindo primado ao processo mental, à ideia. Efectivamente, o final dos anos 60 implicou o fim de uma certa narrativa da história da arte. O objecto da actividade artística relacionava-se agora com a antiarte, ou seja, com a arte do “fim da arte”, isto é, o limite, a explosão do estético. “Morte da arte” é um conceito de Hegel, quando este entendeu que o conteúdo material não seria a parte fulcral da obra de arte.

Neste contexto, destacamos algumas notáveis negações – mais ou menos totais – de acções artísticas, como a peça 4’33’’ (1952), de John Cage, as obras Secret painting (1967) ou 100% abstract (1968), de Mel Ramsden, ou a série Art as idea as idea (1966-1968), de Joseph Kosuth. O próprio Marcel Duchamp, há pouco mais de cem anos, deixava-nos uma das mais importantes obras protoconceptuais: Fontain (1917). O célebre urinol, assinado “R. Mutt”, representava o fazer artístico como possibilidade de não existir, pelo menos em sentido tradicional e efectivo. E voltamos ao início desta breve reflexão. Agosto é o mês da fotografia. É também o mês tradicional das férias e das imagens que desejamos tornar inesquecíveis, enquanto portadoras de afectos, de contemplações, de vida. Mas a fotografia mais sedutora pode muito bem ser a que nunca se tirou.

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