Noite em São Miguel dá passo atrás: discotecas encerradas, bares com restrições. Impacto é “enormíssimo”

Açores deram um passo atrás no desconfinamento após ser detectada uma cadeia de transmissão. Empresários criticam a medida, governo regional diz que as imposições são preventivas.

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A noite de Ponta Delgada estava a ganhar dinâmica Eduardo Costa/Lusa

A noite de Ponta Delgada já se estava a normalizar. Com recurso aos locais e a alguns turistas que passeiam pelos Açores, os espaços nocturnos da maior cidade açoriana tiveram com bastante afluência nas últimas semanas. Incluindo as discotecas, que, ao contrário do que acontece no continente, reabriram a 5 de Junho, com a exigência do uso de máscara.

Em alguns dos espaços cumpriam-se as normas de segurança, noutros nem por isso. Agora, vai tudo ser interrompido: o Governo dos Açores determinou esta terça-feira o encerramento das discotecas e o fecho dos bares da ilha de São Miguel até às 22h. As medidas entram em vigor a partir de 13 de Agosto e vigoram até 1 de Setembro.

Para justificar a medida, o executivo açoriano referiu a existência “pelo menos” uma cadeia de transmissão local de covid-19, o que significa que existiu contágio entre infectados, enquanto antes a região apenas tinha casos isolados com origem em pessoas provenientes do exterior. O “universo de indivíduos relacionados com essa cadeia de transmissão local – casos positivos e contactos próximos – tem idades na casa dos 20/30 anos e que os locais de contaminação principais são os espaços recreativos nocturnos”, justificou o governo em comunicado.

O executivo açoriano, liderado pelo socialista Vasco Cordeiro, acrescenta: “São crescentes as evidências de incumprimento das recomendações de saúde pública emitidas a propósito da pandemia de covid-19, nomeadamente, a existência de aglomerações e ausência de uso de máscara”.

António Velho, proprietário da discoteca Karma Prive, discorda. “As pessoas estavam sempre com máscara e acolheram todas as medidas dentro do espaço”, diz ao PÚBLICO. Considera a medida do Governo “errada”, até porque, recorda, as discotecas foram as últimas a reabrir após a pandemia. Por isso, defende, se o governo “manda fechar”, tem depois a “responsabilidade de ajudar”. E conclui: “O impacto é 100%, vamos ter de nos aguentar”.

“Porque é que eu tenho de fechar?”

António Velho defende que apenas deveriam fechar os espaços que foram frequentados por pessoas infectadas. “Se eu não tive nenhum caso, se as pessoas não foram lá, porque é que eu tenho de fechar? Porque é que não fecham os sítios específicos que as pessoas foram?”, questiona.

Opinião idêntica tem Pedro Gomes, gerente da discoteca Ibiza. “Os espaços por onde as pessoas infectadas passaram deviam ser fechados, ser feitos testes a todo o pessoal que trabalha no espaço e, se der negativo, voltam a reabrir”.

Os funcionários da Ibiza usam máscara e é medida a temperatura corporal aos clientes antes de entrarem, diz. Quanto ao uso de máscara pelos clientes, o empresário estabelece uma comparação entre as discotecas e os espaços de restauração. “Nos restaurantes não estão sem máscara? Se as pessoas estão a beber têm de tirar a máscara para beber ou vamos fazer um furinho na máscara para pôr a palhinha?”, ironiza.

O gerente da Ibiza diz estar muito “apreensivo”, prevendo o fecho de muitas empresas. Contudo, diz “não ter dúvidas” de que o governo regional tem a “noção das dificuldades” dos empresários, prevendo que o executivo açoriano “já deve estar a pensar em apoios” para minimizar as perdas do sector.

O bar Raiz não vai ser obrigado a fechar, mas a medida tem efeitos semelhantes. “Para nós é a mesma coisa do que um encerramento total porque nós começamos a trabalhar às 22h”, diz Gonçalo Veludo, gerente do bar.

Segundo o empresário, a cadeia de transmissão local começou com uma pessoa que chegou aos Açores e teve o primeiro teste negativo, tendo tido teste positivo aquando da realização do teste do sexto dia obrigatório na região. Durante esse período, andou por vários locais, incluindo o bar Raiz. Acabou por contaminar uma outra pessoa, que, por sua vez, contagiou outras. Este grupo de pessoas forneceu a lista de contactos com quem tinha estado, onde se inclui Gonçalo Veludo, numa rede com “mais de 200 pessoas”. “Quando percebi que estava envolvido, quis inteirar-me de tudo o que se passava e tive de fazer o teste, tal como todos os outros. Dei negativo, toda a gente deu negativo”.

Por isso, Gonçalo Veludo conclui que não existiu transmissão nos locais nocturnos e frisa o “contra-senso do Governo” que procura promover o turismo com os bares encerrados. “O que aconteceu não tem nada a ver com a noite”, afirma, considerando a medida do executivo como a “mais fácil” e feita para agradar. “O governo não se quis informar do que é que se passou na origem dos casos positivos”, diz.

“Não tem lógica”

A versão de Gonçalo Veludo é partilhada pela de João Botelho, proprietário do Cantinho do Aljube, um outro espaço por onde, alegadamente, a pessoa com covid-19 que iniciou a transmissão local também passou. “Ela transmitiu o vírus a uma pessoa, e essa transmitiu aos amigos. Mas ainda não passou desse círculo – e eu sei porque conheço as pessoas”, diz. Na investigação para averiguar a cadeia de transmissão, João Botelho também teve fez um teste – deu negativo. Por isso, também salienta que a transmissão “nada tem que ver com os espaços nocturnos”, prevendo um “impacto enormíssimo no negócio”. “Foi a pressão política e social, nem sei explicar, porque não tem lógica nenhuma”, diz sobre as imposições do Governo.

Quase em frente ao Cantinho do Aljube, está o bar Tã Gente. “O que existiu são jovens que convivem uns com os outros, em qualquer parte, tanto na praia como nas suas casas, como nos bares”, descreve o gerente, Mário Franco. Acredita que a “culpa não é dos bares” e defende que encerrar aqueles espaços às 22h “não vai resolver qualquer problema”. Salientando que sempre cumpriu as medidas de segurança no seu estabelecimento, o empresário critica a “falta de fiscalização” ao longo das últimas semanas para “controlar as multidões”.

ARS quer travar disseminação

A Autoridade de Saúde Regional (ARS) diz que as medidas implementadas não se devem à origem da cadeia de transmissão. O objectivo é “acautelar” a “disseminação do vírus” em “meios que possam proporcionar uma maior proximidade entre cidadãos”. “Não é dizer de forma peremptória que esta cadeia de transmissão se originou num ambiente de estabelecimento nocturno. O que estamos a dizer é que estes meios, dentro daquilo que temos vindo a apurar e se tem vindo evidenciar, são mais propícios para a transmissão”, afirma o responsável pela ARS, Tiago Lopes, ao PÚBLICO.

Tiago Lopes frisa que as medidas são “preventivas” e “não punitivas”, destacando que “muitos dos casos” da cadeia de transmissão estão relacionados com faixas etárias mais jovens.

O responsável pela ARS avança que “alguns cidadãos” não estavam a “cumprir com as normas” de segurança naqueles espaços, relevando que a “responsabilidade parte de cada um”, seja “cidadãos” ou “proprietários dos estabelecimentos”. Sobre a cadeia de transmissão local, Tiago Lopes referiu que ainda está a ser feito o “trabalho de identificação de contactos próximos”, conforme os diferentes graus de risco de contágio, mas que, até agora, não foram identificados mais casos positivos.

“Durante o período de incubação deste novo coronavírus, 14 dias, importa manter as medidas de isolamento profiláctico e de vigilância activa dos contactos próximos, porque podem essas pessoas durante o período de incubação desenvolverem a infecção, estarem assintomáticas e pensarem que está tudo bem”, diz.

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