Cartas de amor na era da iconoclastia

As cartas de amor talvez sejam a expressão mais íntima da declaração de amor. Longos corredores de palavras, alinhadas de modo a atingir o espírito a que se destinam.

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Kate Macate/Unsplash

Mesmo que nos últimos anos não nos cheguem habitualmente na forma de papel, quem não gosta de receber uma carta de amor, seja através de uma mensagem de texto ou de um e-mail? As cartas de amor talvez sejam a expressão mais íntima da declaração de amor. Longos corredores de palavras, alinhadas de modo a atingir o espírito a que se destinam. Mesmo que estejam mal escritas, e que possam fazer rir, afectam positivamente. São quase sempre um gesto limpo, puro, por parte de quem as escreve. Um movimento crédulo de quem se coloca a jeito perante os olhos do outro, de quem coloca o coração na montra só para os olhos do eleito/a.

Algumas cartas de amor, nomeadamente as dos escritores, acabam por se tornar célebres e chegam, afinal, a milhares de outros pares de olhos. A beleza destes textos chega a ser comovente. Como, por exemplo, a supracitada carta de Fernando Pessoa para a sua Ophelinha: “Todas as cartas de amor são ridículas”; a de Lord Byron a Teresa de Guiccioli: “Tremo quando te escrevo”; a carta de Machado de Assis a Carolina de Novais: “Nós queimaremos o mundo, querida.” São tantas e tão belas. Todos os registos de amor por escrito possuem um traço comum: a partilha de algo íntimo, algo que pertence àquelas duas pessoas. A intimidade que se sente numa carta de amor é comovente. Acedemos aos segredos de alguém, não através dos ouvidos mas dos olhos, como se o mel pudesse ser soprado.

Por isso, mesmo que estejam em desuso no formato de papel, as cartas de amor continuam a ser escritas e lidas. Escrevê-las e lê-las através de um ecrã não diminui o impacto ou a beleza que possuem, desde que sejam escritas com sinceridade. Na era da iconoclastia, as cartas de amor só precisam de continuar a ser sinceras, tenham gifs ou links para músicas, emojis ou fotografias. As cartas de amor da actualidade tornaram-se objectos que contêm muito mais do que palavras, são quase manifestos multimédia. E muitas vezes não chegam como um todo, vêm a prestações, espaçadas ao longo do dia, atingindo assim o coração de quem as recebe em sequelas de taquicardia. Cada plim de aviso de recepção, cada pedacinho que se escreve ou que é recebido, acelera o coração de quem ama. Há até as cartas de amor públicas, expostas nas redes sociais, para mostrar e partilhar quem se ama e o quanto se ama. Nada é censurável, desde que seja sincero, desde que atinja o alvo, o coração de quem se ama. Por isso, por mais que se mude ou se transforme o suporte como se apresenta uma carta de amor, a intenção de expressar com beleza o que se sente, sintética ou extensamente, continua intacta.

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