Covid-19 em Moçambique: nacionalizar as regras para as tornar úteis

É nos períodos de crise, como aquele que vivemos, que mais úteis se tornam os conhecimentos acumulados ao longo de anos de investigação fundamental. No caso de Moçambique, as anteriores pesquisas acerca dos particularismos culturais e das condições de existência da população permitirão, agora, adaptar as regras supostamente universais de prevenção da covid-19 às realidades do país, tornando-as praticáveis e eficazes.

Foto
Maputo. RICARDO FRANCO/EPA

A frase de abertura deste artigo poderá parecer paradoxal a alguns leitores.

Então não é verdade que — diz-nos o sociólogo Patrick Lagadec — a “crise” é uma situação de incerteza em que as dificuldades se entrecruzam num fenómeno global, no qual as formas habituais de análise e gestão e os instrumentos de resposta que estavam previstos se revelam inúteis, quando não agravam os problemas?

De facto, uma crise é uma altura em que as “receitas do costume” não funcionam, por a influência mútua entre um grande número de fatores desconhecidos gerar novos e incertos efeitos. Por isso, ao tentar resolver um problema, podem criar-se muitos outros e é impossível prever, ou mesmo imaginar, tudo o que possa correr mal. Não obstante, no meio dos inúmeros problemas imprevisíveis, há muitos que podem ser antevistos e, por isso, prevenidos — mas, para tal, é necessário que exista um sólido conhecimento do terreno, a par da capacidade crítica para questionar possibilidades, obstáculos e “receitas”.

Enfim, numa crise não é possível prevenir tudo, mas o conhecimento social pode evitar muita asneira. É a própria incerteza e volatilidade das crises (como aquela causada por esta pandemia) que torna mais precioso que já saibamos, em detalhe e no seu conjunto, em que condições é que as pessoas vivem e podem viver, como interpretam o mundo e as suas ameaças, como lhes tentam dar resposta, que deveres e direitos têm para com os outros, de que forma é esperado que se comportem. Afinal, quais são as suas condições materiais e culturais de existência e de que forma elas podem condicionar quer a comunicação e interpretação da pandemia, quer as formas praticáveis e mais eficazes de lhe fazer face.

Moçambique: prevenir ou morrer em massa

Tudo isto se torna mais fulcral num país que, como Moçambique, disponha de meios muito escassos para tratar os doentes. Mais ainda do que noutros lugares, tal escassez faz com que a diferença entre uma crise ou uma catástrofe sanitária dependa da forma como se consiga, ou não, prevenir o contágio de forma generalizada.

De facto, aí, a capacidade de resposta a uma epidemia generalizada seria sempre muito limitada, por a rede sanitária continuar a ser bastante incipiente.

Mesmo nas grandes cidades, os hospitais não dispõem dos meios materiais e humanos que seriam necessários para dar resposta sequer a uma quantidade moderada de infetados, por carência de especialistas ou pessoal médico generalista, de equipamento de cuidados intensivos e de enfermarias com condições de isolamento.

Contudo, à medida que nos embrenhamos nas pequenas vilas e nas zonas rurais (onde, segundo os Censos 2017, residem dois terços dos cidadãos) a capacidade de resposta a uma pandemia como esta parece aproximar-se de zero. Mesmo em muitas sedes de distrito — uma unidade administrativa grosso modo equivalente aos concelhos portugueses — os postos de saúde são apenas guarnecidos por enfermeiros, funcionam só em horário de expediente e, à medida que nos afastamos dos maiores centros, torna-se frequente que não disponham de eletricidade ou de água corrente.

Dessa forma, uma situação de contágio descontrolado no país rapidamente se transformaria numa calamidade generalizada, tanto mais que as condições de habitação e ocupação do território são a isso propícias.

Se atentarmos na capital, Maputo, encontramos uma área relativamente restrita de prédios, moradias e ruas alcatroadas que em grande parte corresponde à cidade colonial, totalmente cercada por uma muito maior extensão de bairros populares autoconstruídos, com infraestruturas precárias e uma elevada densidade, quer de construção, quer de habitantes por cada casa. É dessa enorme cidade periurbana (o chamado “caniço”) que quotidianamente se deslocam para o “cimento”, em transportes sobrelotados, os muitos milhares de pessoas que asseguram as atividades essenciais à existência urbana, incluindo o generalizado trabalho doméstico e de segurança dos edifícios. É também nos apinhados mercados do centro ou da periferia que muitos dos habitantes adquirem grande parte da renda familiar e, quase todos, os bens de consumo essenciais. Daí que, desde cedo, organizações da sociedade civil tenham realizado intervenções nesses espaços, como foi o caso da distribuição de máscaras comunitárias aos vendedores dos mercados de Maputo, pelo CIP, ainda antes de o Governo as tornar obrigatórias.

Foto
Distribuição de máscaras num mercado por responsáveis do Centro de Integridade Público Centro de Integridade Público

Nas zonas rurais, os riscos de contágio são diferentes, mas bastante maiores do que imaginam os lugares-comuns citadinos. Para além de boa parte da população se agregar em povoações de razoável dimensão, em muitas zonas — com destaque para as províncias mais populosas e, noutras, em torno das estradas — o povoamento é pouco disperso, quando não contínuo.

Ao mesmo tempo, a mobilidade é imprescindível aos habitantes rurais, quer para tratar dos terrenos de cultivo (“machambas”) e da pecuária, quer para acederem aos mercados onde podem vender os excedentes agrícolas e comprar bens essenciais de fabrico externo.

O potencial de contágio é, por isso, elevado e a sua prevenção só pode ser eficaz se as formas de o prevenir forem compreensíveis, praticáveis e sustentáveis face às condições de vida das pessoas.

A exceção (na forma) e a regra (no conteúdo)

É a essa necessidade que uma pesquisa-relâmpago procura, neste momento, dar resposta.

Baseados naquilo que se vai descobrindo acerca do vírus, a OMS e os especialistas dos países com maiores recursos vão produzindo recomendações e regras para minimizar o contágio, que acabam por ser consideradas universais. A OMS tenta fazer ajustamentos “a África”, mas resultam exíguos por este ser um continente com uma enorme diversidade, incluindo no interior de cada país.

Mesmo onde os recursos são maiores, contudo, algumas dessas regras não tomam em conta os constrangimentos da população menos abonada. Por exemplo, como é que se confinam no domicílio infetados pouco graves, quando as condições nas suas casas implicariam infetar toda a família e não são previstas, desde o início, alternativas para esses numerosos casos? Ou como é que se decreta o distanciamento físico nos transportes públicos imprescindíveis aos trabalhadores com menor renda, sem criar mecanismos que assegurem o aumento da oferta desses transportes, de forma a evitar que eles se transformem em “concentrações de contágio” para quem tem de ir trabalhar como sardinha em lata?

Em Moçambique, tenho dedicado os últimos 20 anos a pesquisar, com base na observação e diálogo directo com as pessoas, como elas concebem e reagem aos perigos em áreas tão diversas como a indústria, a família, a adivinhação, a cura tradicional, a limpeza ritual, a feitiçaria, os albinos, os linchamentos, os motins, a guerra ou os reassentamentos de indústrias extrativas. Essa atenção às especificidades locais do risco ajudou-me a notar que várias regras “universais” (de que adiante veremos exemplos) não são praticáveis, tornando-se inúteis ou mesmo contraproducentes.

Contudo, o conhecimento acumulado pelos vários investigadores sociais permite também antever uma saída para o impasse: quase todas as regras que são impraticáveis nas condições particulares do país podem ser adaptadas a essas condições, alterando a sua forma de maneira a garantir que o seu conteúdo e objetivo sejam atingidos e exequíveis.

Para tal, é necessário seguir uma sucessão de passos que correspondem, afinal, àquilo que costuma ser prática no trabalho científico, mas é mais rigoroso e sistemático do que o habitual na definição de políticas públicas.

Foto
O mercado do Xipamanine, em Maputo, foi encerrado no dia 15 de Junho para serem feitas novas delimitações nos espaços para os vendedores, uma medida que tenta garantir o distanciamento físico para travar a propagação da covid-19 RICARDO FRANCO/LUSA

Antes de mais, há que analisar por que razões uma determinada regra é impraticável e identificar — em interação com especialistas de saúde pública — qual é o objetivo essencial que ela pretende atingir.

Segue-se um trabalho mais criativo, de conceber uma regra alternativa que não seja obstaculizada por essas razões, permita atingir o objetivo desejado, impacte o menos possível a vida das pessoas e, sempre que tal seja viável, tenha semelhanças com práticas socialmente conhecidas de lidar com outros riscos.

Depois, é necessário debater essa hipótese de regra com grupos focais expeditos de pessoas que a teriam de cumprir, para avaliar se ela é de facto adequada, que fatores poderão ter sido esquecidos e como pode ser aperfeiçoada, se não substituída por outra melhor.

Por fim, trata-se de propor uma estratégia de comunicação que, capitalizando o debate participativo anterior, permita transmitir essas regras às pessoas como coisas compreensíveis, necessárias e do seu interesse.

Possíveis regras alternativas

Vejamos dois exemplos de regras concebidas segundo essa metodologia.

Em zonas periurbanas e sobretudo rurais, é quase sempre inviável que toda a família fique confinada em casa. É imprescindível ir à “machamba” e ao mercado, obter combustível, muitas vezes carregar água ou apascentar gado.

Mas é possível que essas atividades essenciais sejam realizadas de uma forma que maximize a segurança da família e mitigue as possibilidades de contágio.

Assim, no caso de o confinamento geral ser necessário para prevenir contágios comunitários, cada unidade residencial se fecharia a visitas e só um membro da família (se estritamente necessário, dois) poderia sair para desempenhar essas atividades. Dessas pessoas, seriam excluídas mulheres em aleitamento, que por isso tivessem de se deslocar carregando consigo o bebé. Quem desempenhasse atividades no exterior, teria de respeitar o distanciamento físico, de usar máscara (mesmo que artesanal) na presença de outras pessoas e de levar consigo sabão e alguma água, para se higienizar quando tivesse de tocar nalguma superfície. Ao regressarem, deveriam ter prontas no quintal as condições para tomarem banho e para que a sua roupa fosse lavada, o mesmo sendo feito com os produtos laváveis chegados do exterior.

Estas regras poderão parecer muitas. Mas são claras, justificáveis, exequíveis e com a máxima eficácia possível, tendo em conta as incontornáveis exigências de subsistência. Apresentam, para além disso, imediatas similitudes com a tradicional exigência de limpezas rituais a quem regressa a casa vindo de locais perigosos. São, por isso, coerentes com as referências culturais das pessoas a quem se destinam.

Um outro exemplo é a necessidade de, em ocasiões perigosas ou importantes, realizar o kupahla, uma cerimónia de invocação, diálogo e pedido de proteção aos antepassados em que os membros da família partilham a bebida que lhes oferecem, normalmente pelo mesmo copo. Os riscos de contágio são evidentes, mas ignorá-la ou proibi-la seria um erro, pois não a realizar em tempos perigosos constituiria, na perspectiva das famílias que a praticam, um forte agravamento desse perigo.

Foto
Kupahla, uma cerimónia de invocação, diálogo e pedido de proteção aos antepassados DR

Mas nada obsta à recomendação de que, durante a cerimónia, seja mantido o distanciamento físico, cada pessoa beba pelo seu copo e isso seja explicado aos antepassados. A tal não obstaria, sequer, o parecer e divulgação ativa por parte dos curandeiros, que já face ao HIV-sida inovaram as suas terapêuticas e cerimónias, de forma a torná-las mais seguras — quer introduzindo medidas de higienização, quer estimulando a população do Sul do país a, nas cerimónias de “despoluição” das viúvas, substituir a relação sexual com o cunhado por abluções com plantas propiciatórias.

Em suma, das questões mais materiais às mais simbólicas, é possível construir regras preventivas da covid-19 que sejam praticáveis, eficazes e adaptadas às realidades moçambicanas. E tal só é viável devido ao conhecimento que acumulámos em décadas de investigação fundamental antropológica.


Paulo Granjo, antropólogo, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa


O autor segue o novo acordo ortográfico


  

Sugerir correcção