Nova normalidade ou negação da realidade?

Na verdade, não existe normalidade, nem nova, nem velha. O que há é um processo de adaptação permanente que consiste em neutralizar o que não encaixa.

A ideia de que estamos a viver uma “nova normalidade” instalou-se definitivamente na linguagem do quotidiano. Corresponde a um plano indefinido. Assinala tanto o cessar do confinamento, das restrições de mobilidade e paragem de parte do aparelho produtivo, como a continuação das regras de utilização de máscaras, de distanciamento físico e de limitação de lugares públicos, porque o estado de alarme e a pandemia mantém-se.

Estamos deslocados num ponto intermédio. A expressão “novo normal” enuncia o desejo de regresso a um lugar qualquer de partida, embora o mesmo se apresente diferente daquele a que se aspira. Curiosamente são palavras que se contradizem. Se é normal, não pode ser novo. Se é novo, não pode ser normal. A função enfática da expressão é apenas lembrar que voltámos aos mesmos locais embora saibamos que algo mudou.

Depois do confinamento não somos os mesmos na relação com a realidade do ponto de vista cognitivo ou afectivo. Estamos suspensos num curso indeterminado onde impera a incerteza. Os conceitos que serviam para nos descrevermos parecem desajustados. Tentamos usar as mesmas palavras para entender algo diferente. A realidade está à frente das palavras. Há qualquer coisa que mudou e não a sabemos nomear.

E se essa estranheza constituísse, afinal, um sinal de vitalidade e de questionamento, sinalizando o momento de redefinir o horizonte da economia, do ambiente, das relações sociais e das necessidades básicas? A verdade é que nos últimos meses percebemos que somos interdependentes, que a vida é mais do que trabalho e consumo, e que é possível experimentar o tempo, o espaço, o silêncio e o meio ambiente de forma diferente. Da mesma maneira que, em sentido contrário, ficou exposto que aquilo que tantas vezes achamos essencial é afinal supérfluo, perante um sistema económico artificial que se alimenta dessas lógicas e que em pouco tempo colapsa, dando a ver a ilusão de acumulação de riqueza onde pairamos.

Talvez nos sintamos desajustados porque não queremos voltar ao mesmo e porque o mesmo já não existe, ou surge deformado, assente na obsessão produtivista, na deterioração dos recursos do planeta, no apetite constante por lucro, no medo como padrão de avaliação dos comportamentos, na falta de perspectiva global sobre os desafios, ou na miragem de monoculturas como o turismo como solução para todos os problemas. Há uma “nova normalidade”, mas parecida com a velha, apenas de máscara. Na verdade, não existe normalidade, nem velha, nem nova. O que há é um contínuo desactivar das questões que podiam levar-nos a criar princípios comuns de cuidado colectivo. O que há é um processo de adaptação permanente que consiste em neutralizar o que não encaixa.

O que está a acontecer é transitório, dizem-nos, porque virá aí uma vacina. E se surgirem novos vírus e riscos maiores derivados das mudanças climáticas como tantas vozes avisadas avançam? A “nova normalidade” é um parêntesis entre dois estados de alarme, aquele de onde procedemos e um outro para onde iremos, que já é onde estamos. Seria preciso afirmar ainda um outro a partir de novas interrogações, da afirmação de desejos e da acção. Não é preciso inventar. Basta focarmo-nos no que já existe, mas numa perspectiva que contemplasse o interesse de todos. Em vez da desigualdade crescente, a redistribuição da riqueza existente. Não dispensar os cuidados, a segurança e a tecnologia, mas também não descuidar a democracia, nem prescindir da sensualidade, do corpo e da relação social.

A estranheza que a “nova normalidade” provoca tanto pode vir a sustentar alternativas consistentes, como intensificar a negação da realidade em curso, com o ruído normalizador a querer que rapidamente deixemos de reconhecer tudo o que vivenciámos recentemente. Mas nem tudo está perdido. O privilégio de decidir o rumo a seguir continua a ser nosso.

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