Indigestões…

Na mesa mais próxima estavam dois homens, entre os 45 e os 50 anos, que se embalavam em análises ao mundo e em antecipações de futuros pós-pandémicos.

Na mesa mais próxima estavam dois homens, entre os 45 e os 50 anos, bem-arranjados e recostados nas cadeiras, em pose proprietária acompanhada de palavreado vácuo e de certezas balofas.

Em conjunto, e entre duas garfadas de bife, presume-se que do lombo, é claro, embalavam-se em análises ao mundo e em antecipações de futuros pós-pandémicos, que tiveram o efeito de evocar, em mim, uma bizarra fusão entre um Edgar Morin, em versão Selecções do Readers Digest, e um Bandarra, em versão de articulista da revista Sentinela, anunciando, com megafone de feira, apocalipses sociais, gerados pela hecatombe dos costumes e pela degradante miscigenação a que a Europa se submete diariamente, em nome de Estados Sociais que só servem para alimentar a bandalheira (sic), a preguiça (sic), a bandidagem (sic), ao mesmo tempo que lixam (a palavra exacta não foi esta) a vida dos gajos honestos, que pagam impostos, para alimentar essa chularia toda (sic).

E prosseguiam, entusiasmados, nas suas elucubrações acerca dos bairros da pretalhada e da ciganada (sic), onde, como seria de esperar, a epidemia se estende e prolifera, a par da indigência e da promiscuidade, já que naqueles sítios a malta passa os dias nas ruas e nas tascas e vivem todos aos magotes nas casas que o Estado lhes dá (sic).

E por que porra é que o Estado lhes há-de dar casas? (sic). Afinal, vamos lá ver, a eles os dois, cidadãos cumpridores (e, presume-se, bons pais-de-família), o Estado não dá casa nenhuma, e se quiseram os seus T2, com madeiras exóticas e banheiras de hidromassagem, tiveram de se empenhar ao banco e têm de se matar a trabalhar, todos os dias, para pagar a hipoteca. E para pagar o colégio dos filhos e as férias em Varadero e as dívidas do cartão de crédito….

Tudo isto enquanto essa malandragem (sic) se limita a receber o rendimento mínimo (sic) e a comprar televisões que nem lhes cabem em casa. E têm muitos filhos, pudera, porque quantos mais filhos tiverem, mais recebem do Estado, ou melhor, do Estado não, deles os dois, porque são eles, e os outros desgraçados como eles, quem sustenta essa corja toda (sic).

E bem vistas as coisas, continuavam as ilustradas criaturas, não é só a pretalhada e os ciganos, são também os políticos que temos desde o 25 de Abril, corruptos todos, e é a União Europeia, fraca e presa na burocracia, que está a deixar que a Europa se transforme nesta cloaca (sic), onde só se vêem mouros e pretos (sic). Restava-lhes, todavia, algum conforto, que era o de, mesmo assim, em França e na Bélgica ser muito pior do que aqui (sic).

E se isto já estava mal antes da pandemia, como irá ficar no futuro? – interrogavam-se mutuamente, esporeando-se análises prospectivas, de profundidade proporcional à quantidade de imperiais entretanto ingeridas, para lubrificar a descida do bife pelo esófago, e que os obrigavam, de tempos a tempos, a disfarçar uma eructação, contorcendo as bocas e encolhendo, em gestos de tartaruga, o queixo nos pescoços engravatados.

Às primeiras colheradas nos pudins-flans, a entrada de duas mulheres, de vestidos coloridos e decotados, desviou-lhes a atenção e lançando, sobre elas, uns apreciativos olhares rapaces, de experientes compradores de gado, deram tréguas, ainda que momentâneas, à sua flatulência discursiva.

Todavia, as associações da mente são poderosas, e as recém-chegadas fizeram com que um deles se recordasse dos infortúnios conjugais de um amigo comum, a quem a vaca (sic) da mulher tinha posto os cornos, com um gajo lá do trabalho dela que parecia um choninhas (sic). E o amigo deles, feito manso (sic) ainda tinha concordado em deixá-la com a casa e em pagar a pensão de alimentos ao puto (sic). Havia de ser com eles (sic)…

Depois dos cafés, e enquanto se afadigavam na divisão da conta, arremessaram para a mesa, em jeito de trunfo imbatível: e depois admiram-se que haja cada vez mais gente a votar no outro!

E levantaram-se impantes de certezas, de estômagos e almas reconfortadas, os dois fervorosos zeladores da moral e da pureza lusas, claro que não sem antes lançarem um olhar lúbrico às duas fêmeas de vestidos coloridos, cuja postura corporal indiciava uma sessão de troca de confidências, em gineceu da restauração.

Pela minha parte, e apesar do sol, do céu tão felizmente azul e do verde brilhante das árvores que ladeiam a rua, dei comigo a lamentar o fim do confinamento e voltei para casa, fazendo um breve desvio até à farmácia, porque me recordei – vá-se lá saber porquê – que me faltavam as pastilhas para a azia!

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