Fim do teletrabalho ou a obsessão pela normalidade

A dinâmica dos últimos meses em teletrabalho demonstrou aos mais desatentos que, afinal, para algumas funções é possível ser tão ou mais produtivo à distância.

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rui gaudencio

O jogo de palavras entre colegas da mesma empresa dança ao compasso expectante da mesma nota. “E tu, já voltaste?” Na tentativa falhada de ignorar a mudança nos métodos de trabalho, o estado do nosso planeta e este desacelerado modo de viver, existe ainda uma abordagem que recusa observar o impacto do teletrabalho, e que funciona como âncora de salvação para uma postura conservadora que ainda deseja um dia passado entre a agitação do escritório e as nuvens de fumo do trânsito, esquecendo assim o que a História nos ensina.

São as crises que transformam as sociedades. Depois do telefone e da televisão, o teletrabalho veio para ficar. Voltando à vaca fria, não deixa de ser curioso que estas vozes preocupadas com os possíveis abusos laborais provenientes do teletrabalho sejam as mesmas que nunca abordaram a injustiça dos falsos recibos verdes, dos congelamentos de salários ou da falta de pagamento de horas extraordinárias. O facto que demonstra que quanto menos feliz o trabalhador for, menos produzirá, justifica a necessidade do teletrabalho ser uma opção. Já a presença da tecnologia não é uma opção, é a realidade.

Se é impossível voltarmos ao tempo em que utilizávamos o papiro ou a máquina de escrever como ferramentas de trabalho, convém agora aproveitarmos o melhor dessa coisa que mil coisas faz, o computador. A dinâmica dos últimos meses em teletrabalho demonstrou aos mais desatentos que, afinal, para algumas funções é possível ser tão ou mais produtivo à distância. Será que no escritório, enquanto trabalhamos, estamos realmente a socializar? Será que precisamos de permanecer nove horas num local de trabalho, onde nos vigiamos uns aos outros, para desenvolvermos as nossas tarefas? Onde e quando fazemos a pausa para o café e para o cigarro, ou para o almoço não deverá ser uma escolha individual?

Partindo da diversidade inerente ao ser humano, a cultura de cada empresa será tanto mais rica quanto maior for a sua capacidade de adaptação à inovação e ao respeito pelas diferenças de cada um. Acabamos por entender que há trabalhos que até podem ser realizados em menos de oito horas diárias, pois na actualidade contamos com o apoio dessa coisa que mil coisas faz, o computador. Parece-me que o principal problema dos conservadores se encontra na possibilidade de haver mais tempo para não sermos apenas trabalhadores. Talvez não tenham reparado, mas é iminente a necessidade de conquistarmos o tempo para viver fora da sociedade do cansaço. Para alguns torna-se difícil imaginar dias que não sejam inteiramente dedicados ao trabalho e às deslocações. Não chegámos até a este estádio de desenvolvimento humano para nos tornarmos apenas máquinas hiperprodutivas.

Devemos aproveitar a oportunidade do teletrabalho não só para acrescentarmos momentos com a família e amigos mas para sermos mais activos, informados e criativos, contribuindo deste modo com melhores decisões para a democracia e a sociedade aberta em que vivemos. Como Chomsky diria, “o pensamento só surge naquele que tem tempo e disponibilidade para se preocupar com os outros”. O teletrabalho nunca substituirá as relações humanas; pelo contrário pode até potenciá-las. Estarmos mais próximos à distância pode parecer um paradoxo, mas quantos de nós não aproveitámos para comunicar mais com amigos e família durante estes meses? Com o teletrabalho não se excluem os momentos de socialização entre colegas, nem tão pouco as reuniões de equipa, apesar de até essas se poderem realizar através de videoconferência.

A falácia que defende que os trabalhadores podem ser despedidos por não serem uma cara reconhecida do patrão desaparece, pois no mundo actual todos somos avaliados por objectivos. Será ainda possível imaginar que as empresas ignorem a redução de custos com água, luz, electricidade ou mobilidade decorrente do teletrabalho? Os percursos casa-trabalho-casa passados num trânsito infernal ou em transportes públicos apinhados devem ser o desejo de alguém muito desorganizado para necessitar de aumentar a sua pegada ecológica, tornar as cidades mais caóticas e gastar mais recursos apenas para justificar a sua divisão trabalho-casa. A eficiência, a sustentabilidade e o tempo são mais-valias para aumentar a qualidade de vida colectiva.

Observando os casos do Twitter e da Google, terei de ser o mensageiro para as empresas que não seguirem as práticas dos líderes da modernização: não conseguirão atrair talentos. Os trabalhadores, já com os filhos na escola, beneficiarão do tempo e espaço suficientes para serem mais felizes e produtivos através do uso de ferramentas tecnológicas que permitam organizar as suas responsabilidades. Evocar esta viagem ao futuro, que trouxe na bagagem a deslocalização do trabalho, só nos empurra para uma descolagem a caminho do progresso, deixando por terra a crença simplista de uma marcha-atrás sem transformação da qual já nem temos saudades.

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