Uma política cultural asfixiante

A realização da democracia cultural exige a existência de condições de produção e de meios para que a participação cultural seja mais autónoma e menos dependente de paternalismos e hegemonias externas.

Num tempo em que respirar em público é quase um acto de rebeldia, usar os mesmos remédios para novas adversidades é a fórmula certeira para a catástrofe, todavia é isto que está a acontecer com as propostas do Governo/Ministério da Cultura (MC) no âmbito da nova linha de apoios de emergência ao sector cultural na época da pandemia.

Os 30 milhões que António Costa anunciou para entregar às autarquias e que resulta da reprogramação intempestiva de fundos comunitários afectos a projectos já aprovados no âmbito do programa Cultura para Todos, servem, nas palavras do Governo, o intuito de minimizar o impacto negativo no setor da cultura, “um dos mais duramente atingidos por esta crise”, através do favorecimento da animação das economias locais através do turismo.

Após os desastrosos resultados da linha de apoio de emergência às artes que apoiou através do Fundo de Fomento Cultural (FFC), 311 projetos de um total de 1025 candidatos, sem que se conheça a lista com a seriação dos mesmos e as fundamentações que levaram a essa decisão, um procedimento de excepção que não faz jus a outros concursos da administração pública cultural. Neste âmbito chega-se ao nível do insólito quando o GEPAC (entidade responsável pela gestão do FFC) mantém inactivo no seu website um link sobre “COVID19 - Linha de apoio de emergência ao setor das Artes” desde pelos menos a data de saída dos resultados. Para além disso o GEPAC não responde aos candidatos que se pronunciaram acerca dos resultados pedindo alguma justificação acerca dos mesmos. Esta situação é anómala e lamentável no seio da administração pública do Estado central, e é totalmente oposta da clareza e do investimento que alguns municípios disponibilizam para colmatar a deficiente intervenção do MC, veja-se o caso de Lisboa. É incompreensível como é que o MC lança um apoio com o valor de 1 milhão de euros a nível nacional e Lisboa um montante de 1,25 milhões para artistas e outros profissionais da cultura residentes no município.

Na raiz da desorientação nas políticas culturais do Governo do Partido Socialista está a incapacidade de levantar do chão um Ministério da Cultura digno dos seus antecessores após a destituição efectuada pelo Governo de Passos Coelho. Nas legislativas de 2015, apoiado pela “geringonça”, por artistas e agentes culturais de relevo, António Costa defendia a importância da cultura para o desenvolvimento do país. Contudo, até hoje, o elenco ministerial (João Soares, Luís Filipe Castro Mendes e Graça Fonseca) não tem estado à altura de um pensamento estratégico adequado às exigências da cultura contemporânea. Se João Soares e Luís Mendes adoptaram uma postura voluntarista mas sem os conhecimentos e as ferramentas necessárias, Graça Fonseca limita-se a mobilizar os seu pergaminhos de gestora de startups para tentar colá-los a um sector que tem no seu núcleo duro as artes e o património, e cujo paradigma de funcionamento não se rege pela lei do mercado livre e, antes pelo contrário, carece de uma compreensão profunda do que seja um serviço público de cultura no séc. 21, irredutível à dialética da oferta-procura.

Voltando à celeuma da nova linha de apoios de 30 milhões para as autarquias, Graça Fonseca veio agora explicitar um pouco melhor o anúncio espontâneo de Costa, afinal a nova linha de financiamento versará a modalidade de Programação Cultural em Rede. Assim, O Governo “entende que a Programação Cultural em Rede trará renovadas possibilidades a um sector que precisa de apoio com urgência, com iniciativas que incrementem o turismo cultural; que mantenham emprego e riqueza, valorizando o património cultural e natural; alarguem os potenciais beneficiários e a captação de fluxos turísticos, dinamizando os espaços culturais existentes através de uma programação em rede, utilizando espaços abertos e/ou recorrendo a recursos tecnológicos”.

Nas ultimas décadas a noção de “programação cultural em rede” tem-se estabelecido muito por via do incentivo dos Planos Operacionais Regionais (nomeadamente no QREN 2007-2013). A constituição de redes tem emergido como resposta a oportunidades de financiamento que criam as condições iniciais, mas que requerem um trabalho de articulação entre instituições e agentes culturais com uma base comum de entendimento e partilha de experiências e projetos agregados “em torno objetivos programáticos e de uma ideia de cooperação interinstitucional para a programação e a criação artísticas”. Foi assim com a rede 5 sentidos, e é assim também com a Artemrede, por exemplo.

Se programar em rede é uma tarefa pouco dada a espontaneidades, não se vislumbra a racionalidade nem a eficácia desta medida se o objectivo principal é realmente o de viabilizar apoio urgente ao sector artístico – em situação de desestruturação acelerada. Atingir este objectivo através da cooperação intermunicipal (programação em rede) requer um historial de conhecimento e de experiências anteriores, reivindica a realização de parcerias entre instituições e agentes culturais, mas também a definição de objectivos programáticos comuns, a construção de sinergias, a afinidade entre as diversas lógicas, a confiança e filosofias de programação dos directores artísticos dos equipamentos, entre outras necessidades. Ou seja, não se percebe como vai ser exequível alcançar três objectivos tão dispares entre si: i) apoio de emergência; ii) alavancar o turismo e iii) programar em rede.

Por outro lado, esta proposta do Governo/MC assenta em hipóteses que o sector da cultura vem condenando há muito, tais como a turistificação da cultura e a sua correspondente comodificação/mercantilização. Dito de outra forma, esta nova medida vem uma vez mais reforçar propositadamente a confusão entre o sector nuclear das artes (“core arts field” - KEA 2005) e as industrias culturais e criativas. Esta mistificação só interessa a quem pretenda operar a instrumentalização directa das práticas artísticas no intuito de gerar impactos económicos e outras externalidades positivas em mercados dominados pelo individualismo neoliberal - leia-se consumo de experiências de lazer, de entretenimento ou escapismo.

A obrigação de nutrir o ecossistema cultural e artístico do país não dá o direito ao Estado de transformar à força o sector artístico em animador turístico. Em suma, o papel do Estado na economia das artes performativas é o de garantir que a criação artística contemporânea tenha uma efectiva existência plural e vigorosa, independentemente da sua vetusta incapacidade para gerar receitas próprias suficientes, quer pela dificuldade em competir com a cultura do entretenimento massificado na captação de públicos, mas também pelo conhecido efeito da “doença dos custos” no incremento dos custos de produção.

O pressuposto de que o Estado deve garantir um sistema de mercado cultural assistido como forma de colmatar as falhas do mercado livre (oferta-procura) onde este não funciona - devido à ainda escassa procura de bens artísticos da cultura cultivada -, fundamenta-se no entendimento da cultura como um bem público: garantir a diversidade cultural e criativa; promover a democratização e a democracia cultural; diminuir as barreiras e as assimetrias no acesso; criar condições de apoio à criação artística e à produção cultural; favorecer a vitalidade cultural dos territórios; o desenvolvimento do tecido artístico e cultural sustentável, participado e duradoiro.

A falta de coerência e de visão estratégia não é uma novidade, se regressarmos ao ano 2000 podemos verificar como a tão propalada Estratégia de Lisboa e a disseminação das industrias criativas é ainda uma miragem na maior parte do território português. Que políticas culturais existem no âmbito municipal para o favorecimento das economias culturais e criativas? Na realidade, apesar de décadas a fio de propaganda, lamentavelmente, não se verifica a sua existência plena ancorada nos territórios, porque, tal como noutros sectores, a mentalidade da governação vigente espelha-se nas aparências e nas modas lançadas por alguns gurus de serviço. Richard Florida foi um deles, veio a Portugal lançar umas dicas sobre a “classe criativa”, e uns anos depois assumiu que estava errado.

Na prática, apesar da retórica da “programação cultural em rede” o que vamos ter é uma disputa entre os vários municípios para a obtenção de maior visibilidade mediática e de “vantagens competitivas” para a captação de turistas. Mas se quer apoiar o turismo cultural porque é que não se apoia diretamente essa indústria, classificada aliás no domínio das industrias culturais segundo o estudo de Augusto Mateus (A economia criativa em Portugal, ADDICT, 2016)?

Se no contexto das organizações artísticas o paradigma de produção assenta no primado da oferta – ao contrário da orientação para o mercado ancorado no primado da procura - por que razão se há-de humilhar o tecido artístico nesta fase tão deprimente da sua existência, com a retórica do apoio urgente subordinado a uma função mercantil?

Ao fim e ao cabo isto é tudo o que o sector cultural não precisa, o que seria urgente e já vai tarde é a definição de políticas culturais - e orçamentos condignos - fundamentadas no valor intrínseco e institucional da produção cultural e artística. Enquanto que o valor intrínseco promove o reconhecimento da cultura como factor inerente ao desenvolvimento estético e cognitivo dos cidadãos, o valor institucional deve ser medido enquanto parte da contribuição da cultura (das instituições públicas) para a criação de uma sociedade democrática e que funcione corretamente.

Ninguém nega o efeito multiplicador (spill-over) das actividades culturais e artísticas, mas devemos criticar a visão neoliberal que insiste em domesticar e mercantilizar a criação artística para fins de entretenimento e animação turística das massas. A avaliação de impacto económico baseia-se no conceito de “efeito multiplicador”, analise-se pois os efeitos mas sem subverter as causas. Contabilize-se os gastos dos turistas em receitas de bilheteira, gastos em restauração, em alojamento ou em comércio, mas sem instrumentalizar e colonizar os paradigmas da liberdade de criação artística e o funcionamento especifico do mundo das artes.

Tal como na natureza, na cultura nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Respeitem-se pois os princípios que regem os ecossistemas culturais e artísticos na sua diversidade e pluralismo. A realização da democracia cultural exige a existência de condições de produção e de meios para que a participação cultural seja mais autónoma e menos dependente de paternalismos e hegemonias externas. A cultura não tem obrigatoriamente de ser instrumentalizada para gerar economias e cidades criativas, antes pelo contrário. A existência de meios urbanos criativos não se produz se não existirem amenidades, condições e incentivos adequados e inteligentes.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção