O Cirque du Soleil vive agora debaixo de um céu sombrio

Pandemia deixou quase cinco mil artistas e funcionários da companhia canadiana sem trabalho, depois de se ter visto obrigada a cancelar os 44 shows que tinha em cena pelo mundo. O espectro da falência está à porta.

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Cirque du Soleil DR

Já sabíamos que a pandemia da covid-19 é um fenómeno global, e que o sector das artes e do entretenimento é um dos mais afectados em todo o planeta. Um bom exemplo disso é a situação que está a ser vivida pelos quase cinco mil artistas e funcionários (4679, segundo as contas do jornal francês Le Monde) do Cirque du Soleil, que em meados de Março se viram lançados para o desemprego por via do confinamento determinado pelos governos de vários países e o consequente cancelamento dos 44 espectáculos que a companhia canadiana tinha em cena um pouco por todo o mundo: desde o circo sede em Montréal — onde o novo espectáculo Sous un même ciel (Debaixo do mesmo céu) tinha estreia marcada para 22 de Abril — até à cidade chinesa de Hangzhou, passando por Las Vegas (que, por si só, acolhia sete produções), e também por outras tendas em Lyon e Moscovo, Telavive e Melbourne.

De um momento para o outro, a maior companhia de circo do mundo, que desde a década de 80 vem mudando o paradigma e a ambição deste género popular de espectáculo, viu-se na contingência de fechar as portas e esvaziar as tendas. E se, no ano passado, a empresa arrecadou, segundo o The New York Times (NYT), uma receita de mais de mil milhões de dólares, o Cirque du Soleil depara-se presentemente com uma dívida num montante muito próximo dos mil milhões (mais de 830 mil euros).

“Ninguém jamais imaginou o que poderíamos fazer se perdêssemos 100% da nossa receita”, disse ao NYT Mitch Garber, actual presidente da companhia, comparando mesmo a situação actual de pandemia e as suas consequências na indústria do espectáculo e do entretenimento com a Grande Depressão dos anos 1930, nos EUA.

Além da paralisia do trabalho dos quase cinco mil funcionários (cerca de 95% do total dos efectivos da companhia), e das suas implicações na vida de cada um, o Cirque du Soleil vive também o espectro da falência. E isso é uma questão que, no Quebeque, ganha um significado também nacional.

Revolução estética no circo

Fundado em 1984 por um colectivo de performers, dançarinos, acrobatas, músicos e outros artistas liderado pelo ex-comedor de fogo Guy Laliberté, e que começou por deliciar os espectadores no porto antigo de Montréal, no St. Lawrence River, Le Cirque du Soleil mudou a visão contemporânea desse que já fora “o maior espectáculo do mundo”, mas que entretanto tinha entrado em decadência.

Antes da pandemia, a companhia continuava a apostar em desafiar os limites do género, com produções diversas, algumas muito bem-sucedidas como O, uma extravagância sobre o tema da água, em Las Vegas, que atraía 10 mil espectadores por noite, ou The Land of Fantasy, que em Hangzhou abria as portas da China para o imaginário ocidental do showbizz. Outras, nem tanto, como com a combinação hollywoodesca de teatro e acrobacia Parabour, em Nova Iorque, em 2016, um musical cuja produção custou 25 milhões de dólares e se mostrou um fracasso na Broadway; e como depois aconteceu também com a produção para Las Vegas R.U.N.

Estes fracassos surgiram depois do negócio milionário que Guy Laliberté realizou em 2015 ao vender a maioria do capital do seu circo por 1,5 mil milhões de dólares a um fundo texano liderado pela TPG Capital (60%), e também aos chineses do Fosun Capital Group (20%) e a um fundo de pensões do Quebeque (CDPQ).

É nas mãos destes accionistas que está agora a batata quente da situação aflitiva do Cirque du Soleil, que a agência Moody’s já declarou “em risco elevado de falência até ao final do ano”, refere o Le Monde.

No final de Março, a Reuters noticiava que a companhia estudava várias formas de reestruturar a dívida, e que os accionistas aceitaram avançar com uma injecção de 50 milhões de dólares para suprir as carências mais imediatas, ao mesmo tempo que o próprio ex-proprietário Guy Laliberté — que em 2009 se tornou no primeiro turista canadiano a viajar no espaço, recorda o NYT — não excluía a possibilidade de participar numa parceria para o “resgate” da companhia que fundara.

Menos bem recebida foi a proposta de aquisição do Cirque pela Québecor, uma empresa gigante de telecomunicações desta província canadiana. E os accionistas estarão ainda à espera de que o Banco do Canadá possa intervir na procura de uma solução para uma empresa que é também uma espécie de emblema cultural do país.

Entretanto, as perspectivas do regresso do público às tendas do Cirque du Soleil não parecem ainda muito optimistas. “E nós não podemos trabalhar sem os nossos fãs”, nota Mitch Garber. “Será que o Cirque du Soleil vai conseguir renascer?”, pergunta o NYT em título.

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