Parasita da malária tem o seu próprio relógio biológico

Descoberta envolve cientistas portuguesas. Quanto ao contributo, os genes que acertam este relógio poderão vir a ser usados como possíveis alvos terapêuticos da doença.

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Há novidades sobre os ritmos da infecção por malária. Afinal, o parasita da malária tem o seu próprio relógio biológico. Esta é a conclusão de dois artigos publicados esta sexta-feira na revista científica Science. Um deles tem como autora principal Filipa Rijo Ferreira, do Centro Médico do Sudoeste da Universidade do Texas (EUA), e cientistas do Instituto de Medicina Molecular (IMM) João Lobo Antunes, em Lisboa. Os genes que acertam este relógio poderão vir a ser usados como possíveis alvos terapêuticos da doença. 

“É muito recente o conceito de que os parasitas tenham um relógio biológico que lhes permita antecipar as mudanças rítmicas do seu ambiente”, introduz Filipa Rijo Ferreira. A cientista assinala que o primeiro estudo que mostrou que existiam relógios biológicos em parasitas foi um trabalho publicado em 2017, que assinalou que o parasita da doença do sono tinha forma de contar o tempo. Essa investigação foi uma colaboração entre o Centro Médico do Sudoeste da Universidade do Texas e o IMM. 

“Isto abriu as portas à investigação de um mundo de relações entre parasitas e o hospedeiro ao longo do dia e, para mim, a pergunta mais óbvia era investigar se haveria o mesmo mecanismo no parasita da malária”, recorda. Porquê? Porque se sabia que os ritmos febris da malária ocorrem a cada 24, 48 ou 72 horas (dependendo da espécie do parasita) e que o desenvolvimento do parasita da malária nos glóbulos vermelhos é coordenado. Depois de ter entrado no corpo humano, o parasita consegue invadir glóbulos vermelhos, multiplicar-se e rebentá-los para depois invadir outros glóbulos vermelhos. “Todos os parasitas, cada um nos seus glóbulos vermelhos, fazem este ciclo ao mesmo tempo – estão coordenados”, explica a investigadora.

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O parasita da malária também tem um relógio biológico interno Fernando Augusto

Filipa Rijo Ferreira conta que as conclusões publicadas agora na Science são resultado de um conjunto de desafios “propostos” ao parasita da malária Plasmodium chabaudi, que infecta roedores e tem ciclos de 24 horas. Num dos desafios, testou-se se factores ambientais eram importantes. Para isso, colocaram-se ratinhos infectados com o parasita no escuro e avaliaram-se os ritmos de expressão dos genes dos parasitas. Viu-se que continuavam rítmicos – ou seja, havia uma coordenação a nível da invasão nos glóbulos vermelhos e da expressão dos genes –, o que significava que o ciclo da luz e do escuro não era importante.

E os ritmos dos parasitas são rígidos de 24 em 24 horas ou são flexíveis? Noutro teste, infectaram-se ratinhos mutantes que tinham um ciclo mais longo (de 26 horas). Verificou-se então que os parasitas desaceleram o seu ritmo para estar em sintonia com o hospedeiro e tentar ter um ciclo de 26 horas. Contudo, nunca conseguem estar em sintonia na perfeição. Ou seja, isto sugere que os parasitas estão activamente a tentar mudar o seu ritmo interno. 

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Glóbulos vermelhos infectados pelo parasita Plasmodium chabaudi (a roxo) no sangue de um ratinho Filipa Rijo Ferreira

Depois, avaliou-se se os ritmos de alimentação do hospedeiro eram importantes para os ritmos do parasita. Para isso, em vez de se deixar os ratinhos comerem quando quisessem, deu-se-lhes comida a cada cerca de hora e meia. “Vimos que não são necessários ritmos de alimentação do hospedeiro”, refere Filipa Rijo Ferreira.

Por fim (e não menos importante), ao infectar-se ratinhos mutantes que não tinham qualquer ritmo biológico, testou-se se o ritmo do hospedeiro é mesmo essencial. Observou-se que o parasita continuava a ter ritmos de expressão nos genes, o que significa que esses ritmos são internos do parasita.

Portanto, concluiu-se que os ritmos (como os das febres) da infecção por malária não são apenas uma consequência do relógio biológico do hospedeiro e que o parasita também tem o seu próprio relógio biológico. Além de Filipa Rijo Ferreira, assinam este trabalho na Science Maria Mota e Inês Bento, ambas do IMM.

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Filipa Rijo Ferreira DR

Mais fortes juntos

Quanto ao seu funcionamento, Filipa Rijo Ferreira diz que este relógio parece regular a expressão de 3000 genes (que correspondem a 60% dos genes do parasita). Estará a regular funções essenciais como o ciclo de invasão dos glóbulos vermelhos até ao metabolismo do parasita. E qual a sua influência na infecção da malária? “Possivelmente [o relógio do parasita] pode antecipar o seu ambiente, neste caso os ritmos do corpo humano”, responde a investigadora, acrescentando que o parasita poderá antecipar as ondas dos níveis de nutrientes e a resposta imunitária.

Já o outro trabalho liderado por cientistas da Universidade de Duke (EUA) também publicado na Science investigou o mesmo problema, em células humanas, com parasitas da malária (da espécie Plasmodium falciparum) que infectam humanos. Também se chegou à mesma conclusão: o parasita da malária tem o seu próprio relógio.

Filipa Rijo Ferreira diz que os dois estudos se complementam e conta que a sua equipa soube, por coincidência, deste outro estudo e coordenaram a submissão para publicação à revista científica. “Foi mesmo um exemplo de como ser colaborativo em vez de competir é o ideal. Tentámos que, juntos, fôssemos mais fortes.”

Como agora se sabe que o parasita da malária tem um relógio biológico, pode procurar-se quais os genes que controlam o relógio e utilizá-los como possível alvo terapêutico. “A vantagem é que os genes do relógio do parasita serão diferentes dos nossos e, portanto, os fármacos que actuem no parasita não desregularão o nosso relógio”, esclarece a cientista portuguesa. Também Steven Haase, investigador da Universidade de Duke e autor principal do outro estudo, refere em comunicado que perceber como funciona o relógio do parasita “poderá ajudar a desenvolver novas armas contra a doença”. 

Agora, a equipa de Filipa Rijo Ferreira quer ir em busca dos genes que regulam o relógio biológico do parasita e saber se a hora do dia para tratar a infecção pode melhorar o tratamento, como se faz para o cancro ou o colesterol. Já o grupo de Steven Haase está a estudar se há alguma interferência entre o relógio da malária e o das células do sistema imunitário humano.