Estudo reforça que covid-19 pode estar relacionada com reacção inflamatória rara em crianças

Uma análise ao epicentro do surto de covid-19 em Itália descreve o aumento de casos de doença rara em crianças. Há relatos semelhantes em Nova Iorque, Espanha, França e Reino Unido. Especialistas frisam que casos são raros e que as crianças estão entre o grupo menos afectado pelo novo coronavírus.

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Especialistas avisam pais e profissionais de saúde que as crianças são das menos afectadas pelo vírus REUTERS

Um grupo de médicos da cidade de Bérgamo, na Itália, identificou dez casos de crianças com sintomas semelhantes a uma doença inflamatória rara, chamada doença de Kawasaki, desde que a pandemia da covid-19 teve início na região da Lombardia, no Norte do país. Os detalhes desta investigação foram publicados agora na revista científica The Lancet

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Um grupo de médicos da cidade de Bérgamo, na Itália, identificou dez casos de crianças com sintomas semelhantes a uma doença inflamatória rara, chamada doença de Kawasaki, desde que a pandemia da covid-19 teve início na região da Lombardia, no Norte do país. Os detalhes desta investigação foram publicados agora na revista científica The Lancet

De acordo com o documento, nos últimos cinco anos, apenas 19 crianças foram diagnosticadas com a doença naquela região. No entanto, entre 18 de Fevereiro e 20 de Abril de 2020, foram registados pelo menos dez casos de crianças com sintomas da doença inflamatória rara. Estes últimos dados podem representar um aumento em 30 vezes do número de casos registados, embora os investigadores alertem que é difícil tirar conclusões claras com base em números tão pequenos.

Sabe-se que oito das dez crianças hospitalizadas depois de 18 de Fevereiro foram diagnosticadas com o SARS-CoV-2. Nenhuma das crianças observadas pelos médicos morreu, mas as que adoeceram durante a pandemia apresentaram sintomas mais graves do que aquelas diagnosticadas nos cinco anos anteriores.

“A doença de Kawasaki é um problema raro que afecta geralmente crianças com menos de cinco anos. Causa inflamação e inchaço dos vasos sanguíneos. Os sintomas típicos incluem febre e erupção cutânea, olhos vermelhos, lábios ou boca secos ou rachados, vermelhidão nas palmas das mãos e nas solas dos pés e glândulas inchadas. Cerca de um quarto das crianças afectadas apresenta complicações cardíacas, mas raramente este problema é fatal se for tratado adequadamente no hospital. Não se sabe o que a desencadeia, mas acredita-se que seja uma reacção anormal do sistema imunitário a uma infecção”, descrevem os investigadores.

Desde o início de Abril que associações de pediatria do Reino Unido, da Itália e de Espanha pediram aos médicos para estarem atentos a crianças que apresentassem um quadro inflamatório raro porque a doença pode estar ligada ao novo coronavírus, que causa a doença covid-19.

O primeiro alerta para esta situação partiu da Associação de Pediatras de Cuidados Intensivos do Reino Unido, mas foi, entretanto, secundado pela Associação Espanhola de Pediatria e pela Sociedade Italiana de Pediatras. Médicos dos Estados Unidos e de França dizem também estar a investigar casos da doença.

Segundo as autoridades do Reino Unido, “nas últimas três semanas houve um aumento aparente, em Londres e também noutras regiões do Reino Unido, do número de crianças de todas as idades com um estado inflamatório multissistémico que requer cuidados intensivos”.

“Observamos um aumento no número de crianças encaminhadas para o nosso hospital com um problema inflamatório semelhante à doença de Kawasaki na mesma altura em que o surto de SARS-CoV-2 estava a ocorrer na nossa região. Embora esta complicação permaneça muito rara, o nosso estudo fornece mais provas de como o vírus pode estar a afectar as crianças. Os pais devem seguir os conselhos das autoridades e procurar atendimento médico imediato se a criança estiver doente. A maior parte das crianças fará uma recuperação completa se receber cuidados hospitalares adequados” explica Lucio Verdoni, um dos autores do estudo e médico no Hospital Papa João XXIII em Bérgamo.

Para retirarem conclusões, os investigadores realizaram uma revisão das anotações sobre a situação clínica de todas as 29 crianças que estiveram internadas naquela unidade pediátrica com sintomas da doença de Kawasaki desde 1 de Janeiro de 2015 a 20 de Abril de 2020. Antes do surto de covid-19, o hospital tratava cerca de um caso da doença de Kawasaki a cada três meses. “O aumento [do número de doentes] não pode ser explicado por uma subida das admissões hospitalares”, concluem os investigadores.

Crianças mais velhas e com sintomas mais graves

As crianças admitidas nos serviços de pediatria depois de 18 de Fevereiro eram mais velhas (idade média de 7,5 anos) do que o grupo diagnosticado nos cinco anos anteriores (idade média de três anos). A equipa diz que este grupo também “parecia apresentar sintomas mais graves do que os casos anteriores”, com mais da metade (60%, ou seis em dez casos) a registar complicações cardíacas, em comparação com apenas 10% das crianças tratadas antes da covid-19 chegar a Itália. Além disso, o grupo diagnosticado durante a pandemia necessitou de cuidados mais fortes e mais prolongados do que os restantes casos.

Os autores acreditam que as suas descobertas representam “uma associação” entre o surto do novo coronavírus e um quadro inflamatório semelhante à doença de Kawasaki na província de Bérgamo. No entanto, alertam para o facto de que o estudo é baseado apenas num pequeno número de casos e que investigações mais alargadas serão necessárias para confirmar esta associação.

“Estamos a começar a receber relatos deste casos noutras áreas atingidas pela força da pandemia, incluindo Nova Iorque e Reino Unido. O nosso estudo fornece uma primeira prova clara de uma ligação entre a infecção por SARS-CoV-2 e esta condição inflamatória, e esperamos que ajude os médicos em todo o mundo à medida que tentamos lidar com este vírus desconhecido”, referiu Lorenzo D’Antiga, o principal autor do estudo e médico no Hospital Papa João XXIII, em Bérgamo.

Num comentário ao estudo, Russell Viner, presidente do Colégio Real de Pediatras e Saúde Infantil do Reino Unido, reitera que, embora o artigo sugira uma possível síndrome inflamatória emergente associada à covid-19, é crucial sublinhar — tanto para pais quanto para profissionais de saúde — que as crianças estão entre o grupo menos afectado pelo novo coronavírus.​ “A compreensão deste fenómeno inflamatório em crianças pode fornecer informações vitais sobre as respostas imunitárias ao SARS-CoV-2. Podem existir implicações nos estudos para as vacinas e também pode explicar porque é que algumas crianças ficam muito doentes com a covid-19, enquanto a maioria não é afectada ou é assintomática”, considerou ainda.

Portugal sem casos da reacção inflamatória

Em Portugal, no final de Abril, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, afirmou que foi detectado um caso depois de terem sido questionados “todos os serviços de pediatria”. “Neste momento, temos o reporte de uma situação semelhante, mas que ainda carece de caracterização para ver se é igual às outras reportadas”, afirmou.​

No entanto, alguns dias depois e durante a conferência de imprensa diária sobre a covid-19, Graça Freitas aproveitou para explicar que a criança internada com quadro inflamatório não tem síndrome de Kawasaki. Em Portugal, disse ainda a directora-geral da Saúde, “não foram reportados casos adicionais compatíveis com este tipo de inflamação” e a criança infectada com covid-19 “tem tido uma evolução favorável em relação ao seu estado clínico”.

A Organização Mundial da Saúde está também a estudar a possibilidade de a reacção inflamatória rara que foi já identificada em crianças do Reino Unidos, Itália, Espanha e nos Estados Unidos poder ser uma consequência tardia da covid-19.