O que o Tribunal Constitucional alemão não disse

A decisão do Tribunal Constitucional alemão é uma má notícia. Mas não vejamos nela o que não disse, sob pena de estarmos a dar argumentos aos populistas que – esses sim – querem destruir os valores e princípios fundamentais da União Europeia.

Na semana em que se assinala mais um Dia da Europa, as placas tectónicas do judiciário da União Europeia sofreram um forte abalo com epicentro na Alemanha. Como normalmente sucede, as réplicas do abalo correm o risco de ser mais destrutivas do que o tremor inicial. A reação imediata de alguns governos populistas foi a de aproveitar a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional alemão no passado dia 5 de maio para justificar os constantes ataques que têm dirigido aos valores fundamentais da União Europeia e a princípios como os da independência do Poder Judicial e da separação de poderes.

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Na semana em que se assinala mais um Dia da Europa, as placas tectónicas do judiciário da União Europeia sofreram um forte abalo com epicentro na Alemanha. Como normalmente sucede, as réplicas do abalo correm o risco de ser mais destrutivas do que o tremor inicial. A reação imediata de alguns governos populistas foi a de aproveitar a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional alemão no passado dia 5 de maio para justificar os constantes ataques que têm dirigido aos valores fundamentais da União Europeia e a princípios como os da independência do Poder Judicial e da separação de poderes.

A decisão alemã é indubitavelmente um passo atrás na construção europeia. Será (como já tem sido e deve continuar a ser) objeto de discussão académica profunda sobre as suas implicações ao nível do Direito da União, sendo ainda muito cedo para que conclusões sólidas possam ser retiradas, nomeadamente quanto a questões como o pluralismo constitucional, as soberanias, a “hierarquia” entre Direito da União e Direitos Nacionais ou, mais importante, a relação e distribuição de competências entre o Tribunal de Justiça da União Europeia e os Tribunais Constitucionais nacionais.

Dito isto, há algo que não pode deixar de ser imediata e claramente analisado – aquilo que o Tribunal Constitucional alemão não disse.

Independentemente de outras análises que possam ser feitas (noutros planos), o acórdão não se coloca num plano de ataque e de “destruição” do Direito da União. Pelo contrário, pode mesmo interpretar-se que o TC alemão deu ênfase ao princípio da proporcionalidade (princípio de Direito da União), dizendo que a análise que fora feita pelo Tribunal de Justiça não era “compreensível”, tendo por isso feito ele próprio a sua análise. É uma opção muito criticável (e, salvo o devido respeito, incorreta, com consequências muito nefastas ao nível da relação com o TJUE), mas não estamos perante uma decisão que pura e simplesmente faça tábua rasa do Direito da União, muito pelo contrário. Ou seja, não se pode encontrar nesta decisão uma justificação para ataques deliberados e frontais a princípios básicos do Direito da União, ao contrário do que pretendem os governos populistas.

Outra leitura que não pode ser feita é a de o tribunal alemão ter dito que o processo de construção europeia foi longe demais. O tribunal pronunciou‑se relativamente a um caso concreto e uma matéria específica – num resumo muito simplista, disse que o BCE tem uma missão puramente monetarista, sendo necessária uma maior justificação para um programa que à partida poderá exceder essa missão que lhe foi dada pelos Estados. Não disse que a União não deveria ir mais longe nem disse que os Estados estão proibidos de atuar de outra forma. O que se exige dos decisores políticos perante esta decisão não é “menos Europa” – pelo contrário, exige‑se que tenham o rasgo visionário dos que há mais de 70 anos fundaram a União e que pensem a longo prazo, fora dos seus “umbigos nacionais”, e de uma vez por todas aprofundem o processo de união económica e monetária. Também aqui não podem os governos populistas ancorar a sua pretensão de limitação da União Europeia.

Por último, por muito criticável que seja a decisão do TC alemão (que o é, sem qualquer margem para dúvida), ela foi tomada por um tribunal independente, sem influência dos demais poderes do Estado e composto por juízes nomeados pelo seu mérito e competência e não por afinidades ou lealdades políticas, juízes esses que decidiram apenas com base em critérios jurídicos. É essa independência que confere total legitimidade à decisão proferida – certa ou errada, criticável ou não. Já os governos populistas que se apressaram a vir invocá‑la, mas que nos últimos anos destruíram de forma sistemática o Estado de Direito e a independência dos seus sistemas judiciais, não podem esperar que se reconheça legitimidade a qualquer decisão desses tribunais controlados que venha a pôr em causa os valores fundamentais do Direito da União.

A decisão do Tribunal Constitucional alemão é uma má notícia. Mas não vejamos nela o que não disse, sob pena de estarmos a dar argumentos aos populistas que – esses sim – querem destruir os valores e princípios fundamentais da União Europeia.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico