2020 – O ano em que a China conquistou o Mundo

Se os sinais económicos são hoje muito claros relativamente à ascensão da China enquanto potência mundial, existem outros sinais, menos visíveis, que permitem reforçar essa perspetiva.

No seu polémico livro 1421 – O Ano em que a China Descobriu o Mundo, Gavin Menzies relata a história de uma odisseia extraordinária, iniciada no dia 8 de março de 1421, na qual a maior frota do mundo terá partido da China, rumo ao oceano Índico, tendo como missão a chegada aos “confins da terra para receber tributo dos bárbaros além-mar e unir o mundo na harmonia professada por Confúcio”.

Vem isto a propósito dos mais recentes acontecimentos que paralisaram o mundo e que prometem alterar de forma substancial o funcionamento da economia mundial e o equilíbrio geopolítico existente.

Com efeito, a atual crise de saúde pública com consequências económicas severas parece ter acelerado um processo em curso desde há alguns anos e que se materializa na consolidação da China como segunda grande potência à escala mundial (cada vez mais a olhar para o topo), relegando a Europa de “cabelos grisalhos”, definitivamente (?), para o terceiro lugar do pódio.

O visível

A ascensão da China enquanto grande potência mundial começou com Deng Xiaoping em 1978 e teve um forte impulso a partir de 1984 quando, relativamente à problemática de Hong Kong, propõe a Margaret Thatcher o principio de “um país, dois sistemas”.

Essa ascensão é visível a vários níveis, destacando-se, a titulo de exemplo, duas áreas: Produto Interno Bruto (PIB) e Comércio Mundial.

Relativamente ao PIB per capita, a evolução da economia chinesa foi significativa. Na realidade, se, em 1960, o PIB per capita chinês (em USD) representava 3% do PIB per capita norte-americano (8,8% do PIB per capita dos países da União Europeia (UE), esse valor desceu para um mínimo de 1,3% em 1987 (para um mínimo de 1,9% em 1990 face à UE), situando-se em 2018 em 15,6% (27,4% face à UE).

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De igual forma, constata-se que, em termos absolutos, a importância da China no PIB mundial tem crescido de forma significativa. Na realidade, se em 2014 o peso da economia chinesa era de 16,5%, em 2019 esse valor atingiu os 19,2%. Em sentido inverso, a UE e os EUA, que representavam, em conjunto, cerca de 32,8% do PIB em 2014, passaram a representar cerca de 31,2% em 2019.

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Face às perspetivas de evolução do PIB destas economias nos próximos anos, traduzida numa estimativa do FMI que aponta para um crescimento da economia chinesa (em 2021 o PIB, em termos reais, deverá ser superior em 17,3% face ao registado em 2018), em contraponto com o observado para os restantes blocos económicos, é expectável que a China represente mais de 23% do PIB mundial em final de 2021.

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Saliente-se que esta expectativa é justificada pelo “extraordinário” restabelecimento da atividade económica observado na China, conforme resulta da leitura do indicador compósito Purchasing Managers’ Index (PMI) que, depois de cair de um valor de 53 em janeiro de 2020 para 28,9 em fevereiro, voltou a subir para um valor de 53 em março.

No que respeita ao Comércio Mundial, os dados também são muito claros. Assim, se a China representava 11,8% das exportações mundiais em 2008, esse valor atingiu os 16,2% em 2019. De igual forma, ao nível das importações, o peso da China subiu de 9,1% em 2008 para 13,1% em 2019.

O invisível

Se os sinais económicos são hoje muito claros relativamente à ascensão da China enquanto potência mundial, existem outros sinais, menos visíveis, que permitem reforçar essa perspetiva.

De entre esses sinais, destaca-se a estratégia conhecida como “One Belt, One Road (OBOR), anunciada em 2013 e que visa restabelecer as rotas comerciais que ligam a China, a Ásia Central, a Europa e ainda a África (a célebre “rota da seda”), procurando ligar um espaço geográfico que inclui mais de 60 países, na sua maioria países em desenvolvimento (60% da população mundial e um terço do PIB mundial).

Esta estratégia, designada por alguns como uma espécie de “Plano Marshall”, tem um claro interesse diplomático subjacente, o qual, aparentemente, já está a ter resultados. Com efeito, quatro das quinze agências especializadas da ONU são atualmente dirigidas por responsáveis chineses, traduzindo a importância que a China passou a ter no quadro das organizações multilaterais internacionais.

De igual forma, constata-se um crescente interesse de Pequim em sectores-chave da economia europeia, não sendo improvável que, num quadro de desvalorização do valor dos ativos em resultado da covid-19, esse interesse se venha a acentuar (atualmente, cerca de 35% dos ativos no interior da UE estão nas mãos de empresas estrangeiras).

Sobre esta matéria, a Europa parece começar agora a estar atenta, conforme resulta das palavras de Margrethe Vestager, vice-presidente da Comissão Europeia que, numa entrevista ao Financial Times, afirmou que, “se for necessário, não temos quaisquer problemas em que os Estados atuem como operadores de mercado assumindo posições numa empresa para impedir uma aquisição desse tipo”.

Reflexão final

A viagem de circum-navegação do globo terreste iniciada na China em 1421 terá durado cerca de dois anos. No final, só sete barcos terão regressado, tendo encontrado um país que, devastado pelo caos económico e social, decidiu abandonar tão custoso empreendimento, optando por se auto-isolar do mundo.

Seis séculos depois, o fenómeno covid-19, expressão evidente do denominado “Efeito Borboleta” tão bem descrito por Edward Lorenz em 1963 – um espirro na China constipou toda a Humanidade –, não terá seguramente o mesmo desfecho.

Porque os do velho continente não se sabem entender, porque os do novo continente têm outras prioridades, 2020 poderá ser o ano em que a China conquistou o Mundo.

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