Um concerto da Mariza custa o dobro de um ano de publicidade na imprensa regional

Nenhum apoio do Estado devia ser dado a empresas sem tecto ou justiça salarial, que manifestamente não é o caso dos grandes grupos media portugueses.

Nada contra os concertos da Mariza, do Tony Carreira ou de outros artistas populares que movem multidões e têm por isso cachets mais cachudos. Mas, hoje como nunca, é preciso colocar as coisas em perspectiva.

O valor de um concerto de Verão para animar a malta e vender minis e frangos assados custa sensivelmente o dobro do que uma autarquia investe anualmente na imprensa regional ou local (que são coisas diferentes, como explicarei mais adiante) e que diária ou semanalmente veicula informações do interesse das populações, presta serviços à comunidade e muitas e más vezes serve de câmara de ressonância e comunicação das mil e umas obras e feitos dos autarcas.

É curioso, não é?

Há duas razões possíveis para este desproporcionado fenómeno.

A primeira é que as empresas de informação local e regional estão obrigadas às mesmas regras de contratação pública de todas as outras que produzem bens e serviços. Isto significa que para contratos publicitários, projetos editoriais ou iniciativas com a comunidade, o apoio das autarquias em regime de ajuste direto está limitado: “Não podem ser convidadas a apresentar propostas empresas com as quais a mesma entidade adjudicante já tenha celebrado, nesse ano económico e nos dois anos económicos anteriores, contratos cujo objeto seja idêntico ou abranja prestações do mesmo tipo, e cujo preço contratual acumulado seja igual ou superior aos limites do ajuste direto 75.000 euros nas aquisições de bens e serviços.”

Mesmo que uma autarquia queira ou possa comunicar através dos meios da “sua terra”, que são os únicos que comparecem às suas conferências de imprensa ou assembleias municipais e aqueles que maior alcance e proximidade têm com as populações para as quais desenha políticas públicas, não pode.

Aliás, pode, à razão de metade do cachet que paga a Mariza, ao Tony Carreira ou à agência de branding territorial da moda (e de Lisboa, claro) que lhe desenha um logótipo baseado em fontes do Adobe, ou lhe propõe um “centro comercial da natureza” para exibir as potencialidades do seu concelho nessa feira do umbiguismo provinciano que é a Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL).

Uma autarquia pode gastar cem mil euros num logótipo ou numa BTL, pode ter gabinetes de comunicação maiores que muitas redações da imprensa regional, mas não pode gastar mais do que 25 mil euros por ano em comunicação institucional com os munícipes, promoção de eventos e projetos com a comunidade escolar ou editais no jornal da sua terra.

Desconfio também que para muitos autarcas esta limitação é conveniente. Podem sempre alegar que só podem pagar um prato de lentilhas e quando a “fominha” é muita, um prato de lentilhas serve para adocicar ou manter “rédea curta” na informação local e regional. Há quem se venda por um prato de lentilhas, disso não tenhamos dúvidas e não adianta agora rasgar as vestes como “bastiões” da informação livre e de arautos da democracia local, porque simplesmente não o são.

Não quero generalizar, porque sei que há autarcas que entendem a importância de ter uma imprensa local não desnutrida e com audiências consolidadas, porque lhes são úteis, muito mais, aliás, que qualquer concerto ou festa de Verão.

Chegados aqui, gostaria de fazer uma distinção importante no que respeita às terminologias. Em Portugal há pouca imprensa regional e demasiada imprensa local. Eu diria que, com optimismo, haverá pouco mais de uma dezena de jornais regionais e centenas de jornais locais.

Aqui a escala é importante para perceber as diferentes realidades.

Um jornal regional é, por definição, um meio com cobertura noticiosa de uma região mais ampla, normalmente um ou mais distritos. Os jornais locais são aqueles que dificilmente cobrem e se preocupam com mais do que os limites do seu concelho ou, na melhor das hipóteses, dos concelhos limítrofes.

Depois há ainda uma escala mais “paroquial” com títulos que variam entre a carolice, os pequenos interesses económicos e caciquismos ou arrivismos políticos e até o amadorismo mais confrangedor. Nada contra.

Não se pode é romantizar e glorificar a ideia de informação de proximidade e o papel da imprensa regional/local, como se ele fosse um todo. Porque não é.

Há ainda diferenças do ponto de vista do tecido sócio/económico.

Jornais de regiões mais ricas (por exemplo no litoral) têm outra capacidade de resposta e investimento do que por exemplo jornais de regiões alegoricamente chamadas de “baixa densidade”. Baixa densidade quer dizer, poucas pessoas para ler, mas sobretudo poucas empresas para investir em publicidade e por isso grande dependência da publicidade institucional. Não há portanto uma “realidade” na imprensa regional/local, há várias realidades paralelas.

É por isso que medidas cegas de apoio à imprensa regional serão sempre medidas falhadas, porque não terão em conta as idiossincrasias de cada meio, de cada geografia, de cada região, ou até de cada público.

O princípio de apoio de emergência à imprensa regional/local divulgado pelo Governo é um gesto que sinaliza a importância deste setor, mas não será mais do que isso mesmo, um gesto, uma golfada de ar para um setor ligado ao ventilador.

Independentemente das beneméritas fórmulas que se encontrarem para distribuir um quarto da publicidade institucional pela imprensa regional/local (3,75 milhões), há variáveis a ter em conta.

A soma da imprensa regional/local tem uma audiência superior à imprensa dita nacional, que na sua maioria não passa de jornais regionais de Lisboa.

Por isso, um quarto do valor é para distribuir por duas ou três centenas de jornais regionais/locais, ficando os restantes 75% para distribuir pelos grandes grupos editoriais, onde os administradores, turbo-comentadores, diretores, marketeers têm ordenados que dariam para sustentar um pequeno jornal local.

Na minha modesta opinião, nenhum apoio do Estado devia ser dado a empresas sem tecto ou justiça salarial, que manifestamente não é o caso dos grandes grupos media portugueses.

De sublinhar que esta fatia (25% da publicidade institucional pública) já está contemplada na lei da publicidade institucional e que tem sido apenas uma ficção.

Nunca foi cumprida e duvido que o seja agora. Dou como exemplo, em causa própria, o Jornal do Fundão, o meio com maiores audiências na região da Beira Interior, que nos últimos dois anos recebeu meia dúzia de páginas de publicidade institucional do Estado ou empresas públicas, incluindo a muito custo, uma meia página da campanha “Portugal Chama” de prevenção de incêndios, cujos recursos foram maioritariamente investidos em jornais “regionais” de Lisboa, que como se sabe é uma área muito sensível e vulnerável a incêndios florestais.

Desculpem o ceticismo, mas sem critérios justos, mensuráveis (audiências, controlo de tiragens, número de assinantes, tiragem, ranking digital da Marktest, cobertura regional, etc.) e que não dependam exclusivamente da ignorância generalizada das agências de meios que trabalham com as empresas do Estado, ou da capacidade de lobbies e de amiguismos, lamento, mas este “peditório” vai para os bolsos do costume.

Por isso, troco já o quinhão do prato de lentilhas que vai ser servido por três medidas capazes de ter impacto na sobrevivência da “boa moeda” que é a imprensa regional/local com relevância jornalística e pública (ou seja, padrões editoriais de qualidade e audiência expressiva).

1.º Novo regime de incentivo à leitura:

Este regime compreenderia a reposição do porte pago integral para a imprensa, instrumento que discrimina positivamente os meios em função da sua audiência, da sua capacidade de ligação com as comunidades (incluindo os emigrantes) e com a diáspora.

Este incentivo deveria ser condicional e transitório, com metas e bonificações (porventura fiscais) para os meios com capacidade de converter assinaturas em papel em assinaturas digitais, dando assim um forte estímulo à urgente e necessária transformação digital dos meios e à promoção de uma nova cultura de literacia digital.

Este regime de incentivo deveria ainda compreender a subscrição de uma “bolsa” de assinaturas digitais para escolas, bibliotecas e outros organismos do Estado e ainda benefícios fiscais mais fortes nas assinaturas digitais para os leitores (dedução em IRS).

2.º Alteração à lei de contratação pública por ajuste direto:

Introduzindo limites superiores de contratação para imprensa e outras empresas do setor cultural.

3.º “Desmunicipalizar” a arbitrariedade da atribuição de publicidade:

É inevitável e incontornável que o poder local é e vai continuar a ser um dos principais pilares da sustentabilidade dos meios regionais.

É já uma forma de financiamento público, mas que serve objetivos de comunicação das instituições locais, por isso não pode, nem deve ser encarado como um “apoio direto”. A imprensa local/regional pode e deve ser um parceiro de comunicação das autarquias, mas deve ter bem definida a linha que as separa, essa linha chama-se deontologia jornalística e liberdade de imprensa.

Diria que na sua generalidade os meios regionais/locais equilibrados têm a seguinte estrutura de receitas: 30% de assinaturas, 10 a 20% vendas em banca e 50% em publicidade, projetos ou outros produtos. Dessa publicidade, mais de metade é proveniente das autarquias locais, ou seja um quarto das receitas.

Mas, na maior parte dos casos o grau de dependência das autarquias pode chegar perigosamente perto dos 50% das receitas. Escuso-me de comentar o que esta dependência representa para o pluralismo, a liberdade de imprensa e para a democracia local. Os leitores tirarão as suas conclusões, como aliás já tiram quando percebem que o jornal da sua terra é acrítico e não passa, muitas vezes, de um órgão oficial do presidente da câmara lá da terra.

Costumo dizer que quem tem medo compra um cão, não compra um jornal. E trocar a confiança dos leitores por um prato de lentilhas pode matar a fome hoje, mas não alimenta um jornalismo saudável e com futuro.

É sempre um mau negócio.

Um jornal que tem medo está refém da sua dependência dos poderes que em primeiro lugar deveria escrutinar. Libertar os jornais regionais/locais desta excessiva dependência dos municípios é não só um meio de melhorar a qualidade da democracia local, mas também de apoiar a sua sustentabilidade. Acredito ferozmente que os jornais regionais/locais capazes de fazer jornalismo independente, responsável e comprometido com a comunidade, serão jornais que a comunidade recompensará, fidelizarão leitores, terão mais assinantes, que é o maior garante da liberdade editorial de um jornal — depender maioritariamente dos seus leitores.

Desmunicipalizar, significa que as autarquias deveriam ter de destinar uma parcela fixa do seu orçamento à comunicação institucional e estratégica na imprensa regional/local e que essa parcela deveria ser atribuída por critérios objetivos, quantificáveis, justos e definidos por lei.

Deixar a sobrevivência da imprensa regional entregue ao livre arbítrio ou até à bondade e generosidade dos autarcas é mau para todos, incluindo para os próprios autarcas.

Haveria algumas outras medidas capazes de ter efeitos estruturantes na imprensa regional em Portugal. Mas nenhuma destas medidas devem ser um cheque em branco para o setor. Estes tempos não serão fáceis para ninguém, mas serão fatais para a imprensa regional que não esteja disposta a mudar de vidinha.

Essa reflexão fica para um próximo artigo: “Será que a imprensa regional precisa de um novo modelo de negócio ou precisa de deixar de ser um negócio?”

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