E não se pode exterminá-la?

O esforço incansável e a dedicação dos profissionais de saúde pública nesta pandemia são também uma resposta, uma bofetada de luva branca, a quem tentou desvalorizar o papel da saúde pública no Serviço Nacional de Saúde. Não há contas a ajustar, mas há com certeza lições a tirar para o futuro que queremos todos reconstruir.

A moderna Saúde Pública tem antigas e enraizadas tradições na sociedade portuguesa.

Herdeira de Ribeiro Sanches, de Ricardo Jorge ou de Arnaldo Sampaio, conseguiu sempre ultrapassar os desafios e os obstáculos que teve pela frente. A erradicação da malária, a implementação do Programa Nacional de Vacinação universal e gratuito em 1965, a organização de uma rede de serviços de Saúde Pública com a criação do Serviço Nacional de Saúde em 1979, ou a redução da mortalidade infantil e da mortalidade materna, são alguns dos feitos que tiveram um impacto indelével na saúde dos portugueses.

Em geral, a sua intervenção junto dos grupos vulneráveis, dos excluídos, daqueles que vivem na margem da margem e com deficiente acesso aos cuidados de saúde, nunca colheu a simpatia dos poderes instituídos. A sua invisibilidade é determinada pelas cigarras que ocupam o espaço mediático com o discurso dominante: é incómodo ser interpelado pela pobreza, pela doença, pelo sofrimento humano que a Saúde Pública conhece em primeira mão.

A Saúde Pública, enquanto disciplina mas também como arte e ofício, continua a reflectir sobre o modo de “fazer” saúde, de interrogar, de planear, de pensar e decidir sobre as melhores estratégias. A prestação de cuidados exige esta visão global, dos cuidados de saúde primários aos cuidados hospitalares.

As equipas de saúde pública (constituídas por médicos de saúde pública, enfermeiros de saúde comunitária, técnicos de saúde ambiental, entre outros profissionais) exercem actualmente as suas competências em domínios cada vez mais alargados, da investigação à formação, privilegiando a sua actividade central de protecção da saúde, de promoção da saúde e prevenção da doença.

A Saúde Pública mantém também uma forte presença e expressão em todo o território. Para além do nível nacional e regional, o dispositivo integra Unidades de Saúde Pública em todos os Agrupamentos de Centros de Saúde e nas Unidades Locais de Saúde do país. Mas o que verdadeiramente continua a caracterizar e a distinguir a Saúde Pública portuguesa é o seu trabalho de formiguinha do sistema de saúde, discreto e persistente, junto das comunidades e parceiros locais numa espécie de ombro a ombro em que assenta o progresso social. Esta raiz funda no terreno é amplamente reconhecida pela população, garantia de independência e idoneidade da intervenção do Estado na defesa da saúde. 

É a proximidade criada junto da população, personificada no imaginário colectivo na figura do Delegado de Saúde, que também permite responder de modo célere e eficiente à contenção e mitigação da covid-19. Apesar da crónica falta de recursos e da penúria dos meios, as equipas de saúde pública têm exercido a sua missão com um espírito de compromisso e de serviço à causa pública. Vinte e quatro horas por dia, sábados e domingos incluídos, realizam a vigilância epidemiológica, o seguimento dos casos confirmados, a identificação e monitorização dos contactos próximos, bem como a prevenção e intervenção comunitária, medidas indispensáveis no controlo da pandemia.

Aqui chegados, no momento em que é travado um combate sem tréguas contra a covid-19, é conveniente relembrar que na última década a Saúde Pública sofreu ataques sem precedentes. Teve cortes, cativações, hemorragia de profissionais, “postos” de trabalho extintos. Mas resistiu, não desmobilizou, num contexto adverso criado por alguns que agora cantam loas e aplaudem com cinismo os profissionais de saúde.

O esforço incansável e a dedicação dos profissionais de Saúde Pública nesta pandemia são também uma resposta, uma bofetada de luva branca, a quem tentou desvalorizar o papel da Saúde Pública no Serviço Nacional de Saúde. Não há contas a ajustar, mas há com certeza lições a tirar para o futuro que queremos todos reconstruir.

A Economia e as Finanças que ontem perguntavam “e não se pode exterminá-la?” reclamam hoje o regresso da Saúde Pública, pilar fundamental da Liberdade, do Estado Social e da Democracia.

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