Lidar com a incerteza

Se tanto o conhecimento como a confiança precisam de tempo, a ação política não beneficia desse luxo. Temos de ter a noção de que muitas decisões têm de ser tomadas com graus diferentes de incerteza. Têm de ser necessariamente arriscadas.

Não é possível ignorar o tema da incerteza no contexto da atual pandemia. As incógnitas são imensas, não só respeitantes à evolução do surto, como aos mecanismos que o irão atrasar e interromper. Sem falar da economia e das desigualdades sociais daí resultantes.

Lidar com a incerteza exige fortalecer a confiança.

Vale a pena lembrar que em áreas onde a incerteza é muito menor, o nosso comportamento não deixa de ser curioso! Falo do tabaco, das alterações climáticas, do açúcar a mais, do sexo desprotegido e tantos outros. Como o risco é normalmente traduzido em probabilidades, haverá quem ache que fará sempre parte daquela pequena percentagem dos que não serão afetados. Ou que, em breve, surgirão sempre soluções eficazes. Como também, no polo oposto, existem muitos que receiam que serão obviamente vítimas de todas as doenças e calamidades que possam surgir, e que o princípio da precaução deveria ser levado ao limite máximo permitido.

Entre estes dois extremos da população, confiamos que os decisores não deixem de tomar medidas. Se para uns, elas são invariavelmente exageradas, para outros serão sempre insuficientes. Lembra a velha história “do velho, da criança e do burro”.

Como avançar?

É essencial garantir o acesso continuado aos dados mais credíveis e seguros. Dados esses que, no presente caso, estão a ser coligidos globalmente por milhares de instituições, e que têm de ser analisados, contextualizados e compreendidos. Terão de ser convertidos em informação, que por sua vez irá progressivamente transformar-se em conhecimento. Leva tanto mais tempo quanto maiores forem as surpresas que surgirem.

Curiosamente, por mais robusta que seja essa informação, a forma como cada um de nós a interpreta é muito variável. Tudo parece indicar que, quanto mais clara e isenta for a informação sobre o que se sabe e o que não se sabe, nós só retemos aquilo que melhor se enquadra na nossa conceção do mundo atual. Que seja precisamente a nossa Visão do Mundo que determina em grande parte a maneira como lidamos com a incerteza não nos deve surpreender. Só ouvimos o que confirma os nossos preconceitos! Se achamos que vivemos no melhor mundo possível, registamos e fixamos preferencialmente os sucessos. Se achamos que o mundo deixa muito a desejar só registamos os desastres. Exagero talvez um pouco, mas não muito. Acresce que, quando encaramos riscos em áreas diferentes da nossa vida, raramente somos consistentes.

Esta nossa Visão do Mundo depende, obviamente, da nossa história pessoal e profissional. Um dos fatores mais relevantes será certamente o da nossa literacia. Dois estudos recentes mostram que a literacia em saúde dos portugueses nem é má nem é boa. É mediana. Infelizmente, a nível global, a literacia estatística não é melhor, e suspeito que o mesmo se poderia dizer em relação a muitas outras literacias (económica, histórica, etc.). Outro dos fatores pertinentes terá a ver com a nossa afinidade política, e de como desejamos lidar com as desigualdades, as descriminações e as fragilidades sociais. Teremos de continuar a combater os que irresponsavelmente semeiam o alarme e o medo.

Nos dias que correm estamos literalmente inundados com informação. Quase tudo o que se lê, se vê e se ouve é sobre o coronavírus. Até as alterações climáticas desapareceram do radar. Só se fala em ambiente para ilustrar o extraordinário melhoramento resultante do abrandamento da economia. Sendo preliminar, essa informação alimenta a enorme diversidade de opiniões com que somos bombardeados a toda a hora, de todos os quadrantes profissionais e políticos. Mas é evidente que estamos ainda muito longe de conseguir prever o desfecho desta pandemia. Muitas surpresas irão surgir.

Neste palco local e global, perceber em quem podemos depositar a nossa confiança é fundamental. E todos sabemos que a confiança só se ganha lentamente e é extremamente frágil. Ela ganha-se comunicando a verdade: sobre o que sabemos, mas também sobre o que ignoramos. E exige este compromisso com a verdade de forma continuada. Afinal, não é muito diferente do conhecimento.

Exige também que o poder que é conferido aos decisores seja usado de forma responsável, garantindo que o equilíbrio entre o direito e as liberdades fundamentais conquistadas pela democracia não seja pervertido.

Se tanto o conhecimento como a confiança precisam de tempo, a ação política não beneficia desse luxo. Temos de ter a noção de que muitas decisões têm de ser tomadas com graus diferentes de incerteza. Têm de ser necessariamente arriscadas. A incerteza exige flexibilidade, para que as estratégias se possam adaptar rapidamente ao novo conhecimento.

No entanto, olhando para as últimas semanas, tudo indica que estamos no bom caminho. Apesar de todo o ruído que nos cerca, os nossos decisores e as instituições que suportam as suas decisões mantêm a confiança da maioria dos cidadãos. Sentimos a cidadania responsável que todos desejamos a concretizar-se diariamente. Esperemos que assim continue para que as metáforas da “mola” e da “luz-ao-fim-do-túnel” tenham sido úteis não só para os nossos cidadãos, mas para todos os que vivem na esperança de um mundo melhor.

Manter a confiança para lidar com a incerteza será a palavra de ordem. Mais uma razão para a acarinhar e proteger a todo o custo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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